O caminho do Campo (Heidegger)

Mais freqüentemente com o correr dos anos, o carvalho a beira do caminho leva à lembrança aos jogos da infância e as primeiras escolhas. Quando, às vezes, no coração da floresta tombava um carvalho sob os golpes do machado, meu pai logo partia, atravessando a mataria e as clareiras ensolaradas, à procura do estéreo de madeira destinado à sua oficina. Ela lá que trabalhava solícito e concentrado, nos intervalos de sua ocupação junto ao relógio do campanário e aos sinos, um e outro, mantém relação própria com o tempo e a temporalidade (...) Tudo se passava com se sua discreta solicitude velasse sobre todos os seres (...)
Entrementes, a consistência e o odor do carvalho começavam a falar, já perceptivelmente da lentidão e da constância com que a árvore cresce. O carvalho mesmo assegurava que só semelhante crescer significa: abrir-se à amplidão dos céus, mas também deitar raízes na obscuridade da terra; que tudo que é verdadeiro e autêntico somente chega à maturidade se o homem for simultâneamente ambas as coisas: disponível ao apelo do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra que oculta e produz.
Isto o carvalho repete sempre ao caminho do campo, que diante dele corre seguro de seu destino.
O caminho recolhe aquilo que tem seu ser em torno dele; e dá a cada um dos que o percorrem aquilo que é seu. Os mesmos campos, as mesmas encostas da colina escoltam o caminho em cada estação, próximos dele com proximidade sempre nova. Quer a cordilheira dos Alpes acima das florestas se esbata no crepúsculo da tarde, quer de onde a cotovia de manhã se lança ao céu de verão (...) que o lenhador carregue, ao cair da noite, seu feixe de gravetos para a lareira, quer apanhem as crianças as primeiras primaveras na ouréla do prado, quer passeie a neblina ao longo do dia sua sombria massa sobre o vale, sempre e de todos os lados fala, em torno do caminho do campo, o apelo do mesmo.
O simples guarda o enigma do que permanece e do que é grande. Visita os homens inesperadamente, mais carece de longo tempo para crescer e amadurecer. O dom que desperta está escondido na inaparência do que é sempre o mesmo. As coisas que amadurecem e se demoram em torno do caminho, em sua amplitude e em sua plenitude dão o mundo. Como diz o velho mestre Eckhart, junta a quem aprendemos a ler e a viver, é naquilo que sua linguagem não diz que Deus é verdadeiramente Deus.
Todavia, o apelo pelo caminho do campo fala apenas enquanto homens nascidos no ar que o cercam forem capazes de ouví-lo. São servos de sua origem, não escravos do artifício. Em vão o homem através de planejamento procura instaurar uma ordenação no globo terrestre, se não for disponível ao apelo do caminho do campo. O perigo ameaça, que o homem de hoje não possa ouvir sua linguagem. Em seus ouvidos retumba o fragor das máquinas que chega a tomar pela voz de Deus. Assim o homem se dispersa e se torna errante. Aos desatentos o Simples parece uniforme. A uniformidade entendia. Os entendiados só vêem monotonia a seu redor. O simples desvaneceu-se. Sua força silenciosa esgotou-se.
O número dos que ainda conhecem o Simples como um bem que conquistaram, diminui, não há dúvida, rapidamente Esses poucos, porém, serão em toda parte, os que permanecem. Graças ao tranqüilo poder do caminho do campo, poderão sobreviver um dia as forças gigantescas da energia atômica, que o cálculo e a sutileza do homem engendraram para com ele entravar sua própria obra.
O apelo do caminho do Campo acorda um sentido que ama a liberdade e, no lugar oportuno, suplantará as aflições numa ultima serenidade. Esta se opõe a desordem de só trabalhar, uma desordem que, buscada por si mesma, favorece o nada negativo.
No ar do caminho do Campo, variável com as estações, nasce e se cria uma jovialidade sábia, cujo semblante muitas vezes parece carregado. Este saber jovial é a *Serenidade. Quem não a possui não poderá adquiri-la e quem a possui é do caminho do Campo que a tem, em sua via se encontram a tormenta do inverno e o dia da colheita, em sua via se cruzam a mobilização estimulante da primavera e o fenecer tranqüilo do outono...
A Serenidade sábia é uma abertura para o eterno. Sua porta gira nos gonzos que um hábil ferreiro forjou, um dia, com os enigmas da existência.
Uma vaga luminosidade desce das estrelas es e espraia sobre as coisas. Vagarosamente, quase hesitantes, soam as badaladas das onze horas, desfazendo-se no ar noturno. O velho sino, em suas cordas outrora mãos de menino se aqueciam rudimente, treme sobre o martelo das horas, cuja silhueta jocosa e sombria ninguém esquece.
Após a última batida, o silêncio ainda mais se aprofunda. Estende-se até aqueles que foram sacrificados prematuramente em duas guerras mundiais. O Simples torna-se ainda mais simples.
O que é sempre o Mesmo desenraiza e liberta. O apelo do caminho do campo é agora bem claro. É a alma que fala? Fala o mundo? Ou fala Deus?
Tudo fala da renúncia que conduz ao Mesmo. A renuncia não tira. A renúncia dá. Dá a força inesgotável do Simples. O apelo faz-nos de novo habitar uma distante origem, onde a terra natal nos é devolvida.

*obs: “Sapiente Serenidade”, algo que se aproxima do termo em volga “alegria que se sabe”. Designa hoje, um estado de serenidade, livre e alegre, que gosta de dissimular, marcada por uma ironia afetuosa e um toque de melancolia sorridente. Heidegger quer aqui, neste momento, um retorno ao termo serenidade.
(Martin Heidegger)

2 comentários:

  1. Muito bom. trazer um texto de tamanha valia para a cultura humana na internet e de suma importancia, pois precisamente, o homem da tecnica, precisa ser despertado para o Ser, no apelo do caminho do campo!

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  2. Todos nós, aspirantes a filósofos, almejamos um dia abrir nossos olhos e poder se alertar ao chamamento do caminho do campo. Ah, se hoje me fosse possível agir com a sapiente serenidade e eternizar-se com esse ar de jovialidade sábia.

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