Cruzar das linhas


Ele estava à espreita, sozinho. Estava na sala, e pairou um pouco sobre a janela. Sob ela, muita chuva caía. Em sua cidade, a chuva era muito comum. Ela era a representação da limpeza, da purificação. Para ele, ela não só limpava os céus. Entendia-se que ela deveria ser o momento de reflexão de nossas vidas. Tudo então, deveria ser colocado em questão. Meditava então, sob o barulho da água (chuva) as questões essenciais da vida. Tudo o que havia vivido e experienciado, vinha à sua mente: os amores, as perdas, as dores, os alívios. Ele se sentia leve. Por vezes o arrependimento vinha, visitava-o junto com alguns outros sentimentos. Ele sentia que não deveria pensar assim. Pensava que deveria viver os momentos com a força do eterno retorno: deveria viver todas as circunstâncias de sua vida (os momentos) como se eles eternamente fossem se repetir. A rigor, uma tarefa árdua. Mas, por breves instantes de lucidez, ele atingia a iluminação necessária para entender do que se tratava. E a chuva continuava a cair. O tudo (a plenitude) era ao mesmo tempo o nada. Habitamos sua proximidade, e vez ou outra apenas nos distraímos de sua estranheza. Inventamos artifícios de distração. Então, ele dizia: "apenas relaxe, mantenha a calma e se entregue". O momento crucial do cruzar das linhas. Sol e Lua, dia e noite. Morte e vida. Fronteira? Não há fronteiras para essa experiência, apenas sensações. Quem sabe, quem conhece não pergunta. Com a entrega e a disponibilidade necessária: paira e comtempla...

A doença (Tiago Villano)


A pessoa doente sofre, seja qual a for a enfermidade, por ela não poder ser ela mesma... A doença, seja qual for, é cristalização e enrijecimento - ter apenas um modo de ver as coisas.

Vontade


A vontade de querer tudo, enrijece numa ausência de destino. O correto e exato dominam o verdadeiro e marginalizam a verdade. A vontade do asseguramento incondicional faz aparecer a insegurança em todos os níveis (Heidegger)

Amor... Amor... Amor... (Tiago Villano)


Eu vi seus olhos verdes mostrarem o fim dos dias. Ela queria apenas uma mão para segurar. Eu não podia fazer tudo com você, eu estava acorrentado. Eu sei que o que você fez, foi arriscar-se por mim, mesmo sabendo que meu mundo não fazia parte do seu. Você quis entrar em meu jardim, comer os frutos que nunca havia provado, porque só existiam ali. Você quis por mim, se molhar em uma chuva da qual nunca havia visto, uma chuva perfumada. Vi gotas dessa chuva escorrerem em seu rosto branco e liso... Ecorriam e perfumavam seus braços, seios e pernas. E ouvíamos sons, música, poesia. Por que quando se ama ouve-se música? Ouve-se música dos grilos, das cigarras, dos trovões e das árvores. Tudo se torna música! Mas, via também seus olhos verdes me mostrarem o fim dos dias. Você precisava partir, não fazia parte desde mundo. E você olhava-me como que implorando minha fuga. Você sabia que eu também não fazia mais parte desse mundo. Por isso, seduzia-me com todas as suas forças. Mas não percebia que a ele eu estava condenado. Não poderia ir contigo... Embora desse minha vida para isso. Se não estivesse acorrentado, abandonaria minha estadia e deixaria tudo para trás. TUDO! Porque não se encontra um amor em qualquer lugar! E quando se encontra deve-se abraçá-lo e vivê-lo até os limites! Mas, nosso tempo parecia estar se esgotando, olhávamos com os olhos de criança ao se despedir da terra natal. E o amor crescia e com ele resignação e uma doce tristeza que já anunciava saudade. Mas quando chegou a hora de você partir, olhou-me com seus olhos verdes, lágrimas escorriam e eu estranhava seu sorriso com os cantos da boca. Então, nunca mais esqueci sua voz me dizendo: - “Terei de ficar contigo... veja meus pés, também estou acorrentada! Seu mundo terá de ser o meu”...

Nossa Gaveta Interna (Tiago Villano)


Acredito que todos nós possuímos uma gaveta interna. Tudo o que negamos, reprimimos ou desprezamos de nós mesmos é jogado para lá. Quando menos esperamos, nos sonhos ou em momentos de explosão (fúria, alegria ou tristeza) a gavetinha se abre... E muita coisa vem ao nosso encontro. No mais das vezes, nos torna algozes de nós mesmos, nos fere, nos machuca e nos atormenta. Vemos homens fazerem coisas terríveis quando bebem ou usam drogas. Outros entram no que se chama “bad”. Sim, as drogas abrem a gaveta mesmo quando não se tem as chaves. Temos de reconhecer as coisas jogadas e guardadas dentro dessa gaveta. Temos que sozinhos e sóbrios abrirmos a gaveta e nos depararmos com nós mesmos – num exercício constante. Algumas coisas conseguiremos limpar, outras talvez demorem mais tempo e o que sobrar talvez seja incurável. Mais é preciso abri-la para reconhecer o que existe lá dentro. Depois de um tempo, você aprende a abrir e fechar quando quiser, aprende que não se deve acreditar em algumas coisas guardadas lá dentro, que não se deve deixar dominar pela força tempestiva de rachaduras em nossa alma. Precisamos reconhecer sua existência e sua força, caso contrário, poderemos ser guiados, sem perceber, não pela porta principal, mas pela gaveta dos fundos – sempre pronta a exorcizar os demônios guardados.

Acorda-me...


Acorda-me, para eu dormir em ti.
Acorda os meus mundos para ti.

Acende as minhas estrelas mortas mais perto de ti.

Sonha-me fora deste mundo.

Leva-me para casa, para a casa das chamas.

Faz-me nascer, vive-me, mata-me mais perto de ti.

Mais perto do centro onde se nasce.

Leva-me para onde for mais quente.

Leva-me para mais perto, mais perto de ti.


(Gunnar Ekelof)

Repetição...


A intensidade do momento vem da liberdade, da absoluta espontaneidade. Do nada. Naturalmente tais estados são estados de exceção. O normal não prova nada, a esceção prova tudo. Na exceção a força da verdadeira vida rompe a casca de um mecanismo paralisado pela repetição. (Nietszche)

O amor dos casais... (Tiago Villano)


Aqui dos telhados de casa o mundo parece ser mais calmo. É noite e o silêncio se torna mais intenso. É frio mas, o pouco de vinho se faz suficiente. Estrelas, escuridão e nuvens... Casas, prédios e luzes. Fico pairando sobre meus pensamentos, eles sãos muitos. Mas, em uma rua deserta passa um casal bem de longe, abraçados e sob os mesmos passos. Paro e logo penso: na vida, no amor e nos seus percalços.

Há os casais que se amam, cujos parceiros parecem ser feitos um para o outro. Fico a pensar que o fim da história nunca é muito feliz. Isso porque, se o outro me completa e vice-versa, o risco é que nenhum deles possa sobreviver, não como ente separado e distinto. A mistura poderá os confundir, e se um não vive sem o outro, ambos não poderão sobreviver à separação, morrerei logo em seguida (matando-a ou matando-me). Sempre vemos isso em jornais (Linderberg) ou mesmo me literatura (Romeu e Julieta). Tentação irresistível...

Mas maioria de das pessoas acaba por viver relações menos intensas, nada interessantes e claro, menos fatais. A maior parte delas se preocupa com viagens, despesas, criar filhos, mudar de casa. Mas talvez nesses casais, sem o tempero da intensidade, química da pele e dos exageros um dos parceiros vive com a sensação de que sua escolha amorosa foi covarde, resignada? Por um falso otimismo ou simples covardia? Ele não é bem o que eu queria mas, fazer o quê... Assim, se torna fácil colocar a desculpa de que o amor é uma idealização. Mas será? Se for uma idealização (tentação irresistível) ela existe, na mente e na vida. Pois vemos o amor tragédia, o resignado, o monótono, o sem-graça, o exagerado e mesmo o romântico ao nosso redor.

Será por isso, que os casais normais são chatos? Porque eles não se permitiram vivenciar nada além dos padrões? Defendem-se com argumentos religiosos, morais, sociais. Alguém que crítica a loucura de um casal, pode parecer razoável mas, no fundo é pequeno e covarde. Não vemos as coisas como elas são, e sim a partir de nós mesmos. Vemos o que somos! Por isso, fácil julgar e condenar. Aquilo que bate em meus desejos reprimidos ou problemas mau resolvidos - me revolta logo, atiro pedras. Dirá você: Eu vivo uma vida normal! Viajo feito louco, como fartura, malho, corro, tenho uma crença, compro, gasto, vou ao banco, ao shopping, tenho amizades, controlo as emoções, escovo os dentes depois das refeições, vou ao cinema, leio jornais, como apenas nos horários certos, evito gripes e resfriados, me cuido...

Ufa!!!! Mas será que você se deixa tocar pela vida? Existe um ser humano aí dentro? Ou apenas um ser autônomo, perturbado pela insônia e pelo tédio nos dia de ócio? Sente seu corpo? Sente suas emoções? Sabe do que precisa? Se permite chorar, pelo belo e pelo trágico? Consegue ser você mesmo ou segue apenas regras? Se anula e se reprime o tempo todo, preocupado com: o que vão pensar de mim?

É engraçado os percursos amorosos das pessoas. Na maioria das vezes, elas não passam de poucos momentos alegres, servidos em uma mesa triste: porque as relações que não conseguem transformar e enriquecer ambos, inevitavelmente se torna empobrecedora. No mais dos casos, ou ambos estão resignados, distantes e conformados ou um dos parceiros ainda está tentando mudar o outro... Amando aquele a quem ele próprio inventou.

À vida! Um último gole de vinho! Boa noite...

Guardador de Rebanhos (XLIV) trechos


Acordo de noite subitamente, e o meu relógio ocupa a noite toda, não sinto a natureza lá fora. O meu quarto é uma coisa escura com paredes vagamente brancas. Lá fora há um sossego como se nada existisse. Só o relógio prossegue o seu ruído. Abafa toda a existência da terra e do céu... quase que me perco a pensar o que isso significa. Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca, enchendo com sua pequenez a noite enorme... (Fernando Pessoa)

Pastor Amoroso – trechos


"Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela.

E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que encontro a ela.

Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala.

Tenho uma grande distração animada. Quase desejo encontrá-la.

Quase que prefiro não a encontrar, para não ter que a deixar depois.

Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero (...)

Tenho alegria e pena porque perco o que sonho.

E posso estar na realidade onde está o que sonho.

Não sei o que hei de fazer de minhas sensações.

Não sei o que hei de ser comigo sozinho.

Quero que ela me diga qualquer coisa

para eu acordar de novo"

(Fernando Pessoa)

Ser (Tiago Villano)


Vivendo uma existência completamente instalada na rotina, fingimos que tudo é o mesmo. Que a vida é igual, o mesmo brilho (se é que há o brilho) as mesmas coisas, as mesmas pessoas, nos vemos sendo a mesma pessoa. E a monotonia se faz pelo embobrecimento do simples. Não há lugar para o estranhamento, para o espanto e a epifania da natureza. Não percebemos que tudo flui e que somos uma incandescência. Nossa chama que outrora brilhava, terá que aos poucos se apagar; o outono se foi e logo o inverno terminará seu ciclo. Esquecidos da fragilidade da vida, nos engessamos numa impressão de que ela parece estar garantida, sempre disponível, e, por isso acaba sendo inevitavelmente descuidada. As coisas, a natureza, os acontecimentos, as pessoas vão aos poucos se apagando, e não vemos mais sua importância. Só veremos que cada momento é único e que precisava ser vivido em todo o seu esplendor e em toda a sua tragédia quando nítidamente estivermos na iminência da perda ou diante dela. Esse poderá ser então nosso SER e nossa FONTE – ali poderemos beber a nossa água ou o nosso veneno...

O Pessimista, Otimista e o Sensato


O pessimista, tolo por natureza, colhe todas as noticias ruins do jornal e manda aos amigos toda a manhã; acha que o ser humano não presta mesmo, que o mundo é mero palco de guerras e corrupção... O otimista, fútil por natureza acha que a realidade é a das telenovelas e dos sonhos adolescentes, das modas, das revistas, da praia, do shopping, do clube, da academia... O sensato (não o sem graça, não o chato) sabe que o ser humano não é grande coisa mesmo, mas como Jesus, gosta dele, acredita nele. Sabe que a vida é luta, mas quer vive-la bem: que existem além de injustiça, traição e sofrimento - beleza e afetos e momentos de esplendor. Que se pode confiar sem ser a toda hora traído por quem se ama. (Lya Luft - Perdas e Ganhos)

Lua (Tiago Villano)


Ele sabia que seu caminho havia ficado estreito. Não havia muitos em quem confiar, e sempre que se distraia lembrava do tempo em que vivia sem grandes preocupações. Não se questionava acerca de si mesmo. Nem duvidava de si e de suas qualidades. Tinha, um trabalho modesto, uma vida simples e um bom amor para se alimentar. Mas o tempo, devorador humilde, arrancou-lhe o seu amor... e com ele a paz. Trouxe dúvidas, medos, insônias cada vez mais frequêntes e sentimentos ambíguos, estranhos de se acostumar.

Cada vez mais dizia p/ si mesmo: por que é que se vive? E todos os sentidos se esvaziavam, já que a angústia se tornara recorrente. Uma sensação de vazio. Como se a vida no mundo fosse completamente desprovida de explicações; leviana, sórdida... sentia que todos se enganavam para não morrem da verdade. E continuava se indagando sobre a finitude e o grande infinito espacial. Gostaria de estar ligado a alguma força cósmica, pois quando amava era isso que sentia: fusão, preenchimento. Mas agora, pele e ossos e a cama vazia.

Certo dia, olhando para o céu, avistou a lua e uma estranha sensação o visitou. Teve a nítida experiência de perceber não que olhava a lua mas, que LUA o observava. Como se por breves instantes, todo o universo era passível de fazer sentido. Com isso: uma leve sensação de pertencimento. (Teria a lua lhe mostrado o rosto de sua amada?) Depois daquele dia, Jaime não foi o mesmo. Embora essa sensação cada vez mais se tornasse rara, se deu conta de estava apenas lúcido diante da loucura do mundo – e toda a sua verdade encontravasse escancarada. Sua doença existia enquanto estava fundido e preso ao seu grande amor. A doença de não se dar conta que eles não eram a união de duas metades, mas eram duas pessoas inteiras prometidas um ao outro. Não ter percebido que sua solidão estivera sempre ali, à sua espreita. E a dor que sentira foi a de um desejo frustrado e sua cegueira de ilusão: - a vontade de querer que tudo seja para sempre...

Conselhos


Nunca deixem ninguém dominar seu corpo ou sua mente. Tenham cuidado especial para que seus pensamentos permaneçam livres. Um indivíduo pode ser livre, contudo pode estar mais preso do que um escravo. Dêem seus ouvidos às pessoas, mas nunca o coração. Demonstrem respeito por aqueles que estão no poder, mas nunca os sigam cegamente. Julguem com lógica e razão, mas nunca façam comentários.

Nunca considerem alguém como superior a vocês, não importa que posto ou situação eles tenham na vida. Tratem todos com justiça, ou poderão querer se vingar. Tenham cautela com o dinheiro. Atenham-se às suas crenças, e os outros ouvirão. Quanto aos assuntos do amor... O meu único conselho é que vocês sejam sinceros. É a ferramenta mais poderosa para abrir um coração ou ganhar um perdão. (Chistopher Paolini – enviado por Dudú)

A ti...

A ti te estoy ablando (...) Podría transgredir las fuerzas de Dios, podería no ser yo si se precisa, podría contradecir lo que diga mi voz, podría caminar en el fuego para que me quieras como quiero (...) A ti estoy ablando. A ti que con lo que te sobra me darías la luz para encender los días. Si nunca dije la verdad fue porque la verdad siempre fue una mentira. A ti que me dejaste solo incluso cuando estabas en mi compañia. A ti ya no te queda nada. A ti que te duermes com tu orgullo y te dejas tocar por tu rencor. A ti ya no te queda NADA. (Ricardo Arjona)

Andei


Eu andei com voce pela cidade e eu nomeei os lugares e a vida-sonho de cada rosto que cruzamos. E voce se assustou com a intensidade dessa extensão vazia, se assustou ao ver que o homem ao teu lado não tinha lugar nem nome, e era na dor que ele colhia a palavra poema. (Juliano Pessanha)

Amor e Exílio


É que eu já sabia que o amor é uma visitação na qual despedida e cumprimento se conjugam para melhor rememorar a imensidão do nosso exílio. (Juliano Pessanha)

Nossos Sintomas


Ao invés de exorcizar o sintoma e recolocar o homem na boa ordem da teia, é necessário, num amigamento do sintoma, percorrê-lo e perfurá-lo até o fim e, atravessando todos os seus mascaramentos mundanos e todas as suas paragens legíveis, chegar novamente ao encontro da pureza do enigma. (Juliano Pessanha)

Eliot


[...] human kind Cannot bear very much reality

[...] o ser humano não tolera muita realidade (T.S. Elitot)

Tédio


Tengo dos sueños sin dueño, una disculpa por culpa, y un malestar por estar. ¿Tienes el remedio del Tedio? (Ricardo Arjona)

Criança


Não preciso do fim para chegar (Manoel barros)

É preciso compreender as crianças, suas semelhanças e, principalmente, suas diferenças (Robert Doisneau)

As Nuvens


As nuvens são sombrias mas, nos lados do sul, um bocado do céu é tristemente azul. Assim, no pensamento, sem haver solução, há um bocado que lembra que existe o coração. E esse bocado é que é a verdade que está a ser beleza eterna para além do que há. (Fernando Pessoa)

Cântico dos Cânticos


- Na minha cama, durante as noites, tenho procurado aquele a quem minha alma tem amado (...) Teus lábios são como fio escarlate e tua fala é deleitável. Como fatia de romã são as tuas têmporas atrás do teu véu. Fizeste meu coração palpitar, minha irmã, noiva [minha], fizeste meu coração palpitar com um só dos teus olhos, com um só pendente do teu colar (...) Quanto melhores são as tuas expressões de afeto do que o vinho, e a fragrância dos teus óleos do que toda sorte de perfume! (...) Teus lábios estão gotejando mel de favo (...) Mel e leite estão debaixo da tua língua, e a fragrância dos teus mantos é como a fragrância do Líbano. Tua pele é um paraíso de romãs, com as frutas mais seletas, plantas de hena junto com plantas de nardo; nardo e açafrão, cálamo e canela, junto com toda sorte de árvores de olíbano, mirra e aloés, junto com todos os perfumes mais finos (...)

- Entre meu querido no seu jardim e coma dos seus frutos seletos. Abre-me, ó minha irmã, minha companheira, minha pomba, minha inculpe! Pois a minha cabeça está cheia de orvalho, os cachos de meu cabelo, das gotas da noite. Lavei os pés. Como é que os posso sujar? Meu querido é que retirou a sua mão do buraco e minhas entranhas ficaram alvoroçadas no meu íntimo. Levantei-me, sim, eu, para abrir a meu querido, e minhas próprias mãos gotejaram mirra, e meus dedos, mirra líquida sobre as concavidades do fecho.

- Teu umbigo é uma taça redonda. Não [lhe] falte o vinho misturado. Teu ventre é um monte de trigo, cercado de lírios. Teus dois peitos são como duas crias,e teu paladar, como o melhor vinho que escorre suavemente para meu amor, deslizando sobre os lábios dos adormecidos (...)


Põe-me como selo sobre o teu coração, como selo sobre o teu braço; porque o amor é tão forte como a morte (Cântico dos Cânticos ou Cântico de Salomão)

Descer na Dor...


Descer na dor é descer na raiz de vida, de existência, porque dor pode ser identificada com terra, finitude e limitação, enquanto que a superação é identificada com céu, ilimitado e além. A busca pelo ilimitado se torna desesperante, desde que tudo é indeterminado, pois na medida que faz se interpela.


O acontecimento gratuito da dor só se revela na peregrinação mais solitária, se mostrando na grandeza, onde cume e abismo são o mesmo, reunidos em um. Esse é o caminho pinacular da vida – descida e subida, esse é o auge da existência, pois o cimo do ser é ir ao mais profundo da existência, e é nesse sentido que cume e abismo estão reunidos num só. Desse modo, pode-se perceber que vida e existência são constitutivamente dor na medida que são ação.

Pois ao tentar ir a profundidade da existência, com empenho, encontramos, na verdade, o fundamento da vida, isto é, o pináculo, donde podemos afirmar que cume e abismo são um e o mesmo, pois no abismo (na profundidade) encontramos o cume (fundamento) da vida. E é nesse eterno devir que se instala a vida em sua plenitude. (Parafraseando o Zaratrusta de Niezsche)

Provérbio


Pois há um evento conseqüente com respeito aos filhos da humanidade e um evento conseqüente com respeito ao animal, e há para eles o mesmo evento conseqüente. Como morre um, assim morre o outro; e todos eles têm apenas um só espírito, de modo que não há nenhuma superioridade do homem sobre o animal (...) Todos vão para um só lugar. Todos eles vieram a ser do pó e todos eles retornam ao pó. (Provérbios 3:19,20)

Eclesiastes

Do amor que se foi...


O vento da noite gira no céu e canta. Posso escrever os versos mais tristes esta noite. Eu a quis, e ela, às vezes, também a mim. Em noites como esta a tive entre meus braços. A beijei tantas vezes debaixo do céu infinito. Ela me quis, como algumas vezes eu também a ela. Como não ter amado seus grandes olhos fixos. Posso escrever os versos mais tristes esta noite. Pensar que não a tenho. Sentir que a perdi. Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela. E o verso cai na alma como o sereno no pasto. Que importa que meu amor não pôde mantê-la comigo. A noite está estrelada e ela não está comigo. Isso é tudo. Alguém canta lá longe. Muito longe. Como para aproximá-la, meu olhar busca por ela. Meu coração busca por ela, e ela não está comigo. A mesma noite que faz branquear as mesmas árvores. Nós, os daquela época, não somos mais os mesmos. Já não a amo, é certo, mas quanto a quis. Minha voz buscava o vento para tocar seu ouvido. De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos. Sua voz, seu corpo claro. Seus olhos infinitos. Já não a amo, é certo, mas talvez ainda a ame. É tão curto o amor, e tão longo o esquecimento. Ainda que esta seja a última dor que ela me causa. E estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.
(Pablo Neruda)

Walking After You (David Grohl - Foo Figthers)


Essa noite eu estou enrolado no meu cobertor de nuvens. Sonhando em voz alta, coisa que eu simplesmente não faço sem você, na realidade... Eu estou atrás de você, eu estou atrás de você... Se você se afasta de mim, eu me aproximo de você. Se você se afasta de mim. Se você não aceita rendição, ceda um pouco mais. Você não foi amada? Eu não posso ser sem você, na realidade. Eu estou atrás de você. Se você se afasta de mim, eu me aproximo de você. (Walking After You - Foo Figthers) http://br.youtube.com/watch?v=QW2XcQird20

Há uma continuidade...


Há uma continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. O silêncio é a profunda noite secreta do mundo. Sentiu o silencio dessas noites? Quem ouviu não diz. Há uma maçonaria do silêncio que consiste em não falar dele e de adorá-lo sem palavras. Mas, há um momento em que do corpo descansado se ergue o espírito atento, e da Terra e da Lua. Então ele, o silêncio, aparece. E o coração bate ao reconhecê-lo: pois ele é o de dentro da gente. Pode-se depressa pensar no dia que passou. Ou nos amigos que passaram e para sempre se perderam. Mas é inutil esquivar-se: há o silencio. Então, se há coragem, não se luta mais. Entra-se nele, vai-se nele para o inferno? Que se entre. Mais do que isso um homem não pode. Viver na orla da morte e das estrelas é vibração mais tensa do que as veias podem suportar. O coração tem que se apresentar diante do Nada sózinho e sózinho bater em silêncio de uma taquicardia nas trevas. Só se sente nos ouvidos o próprio coração. Se não há coragem, que não se entre... (Clarice Lispector)

Ressurreição


Quanto a mim, subtituo o ato da morte por símbolos. Símbolo este que pode se resumir num profundo beijo mas não na parede áspera e sim boca-a-boca na agonia do prazer que é morte. Eu, que simbolicamente morro várias vezes só para experimentar a ressurreição. (Clarice Lispector)

Fluidez e Transição (Tiago Villano)


Me perguntas se és bela? Se não fosses, a lua não ascenderia suas luzes, nem o sol subria aos céus. Aquilo que vês, não é o que vês, e sim o que és. Não podes enxergar teu reflexo com nitidez, nem ver o que há de belo porque estás embriagada de mágoa, culpa e ódio. Deixe a chuva cair, deixe as nuvens passar. Olhe, olhe através de meus olhos, talvez eu possa te ajudar. Me conte um pouco de sua vida, um pouco de suas feridas, pode haver algo ainda a ser feito. Respire... Não procure se ver agora, está acontecendo... Desamarre os nós, e desgrude toda as certezas que homens doentes contaram a seu respeito. A cada dia um peso a menos? Sim, vá além de si mesma... Mas, se não suportar a angústia, poderá correr, poderá fujir para seu reflexo antigo no espelho. Finja ver a mesma pessoa quando acordar... e tudo voltará ao que era.

Se foi... (Tiago Villano)


Beijo bocas mas, em vão procuro sentir a sua. E ao acordar – sonho e náusea. Toco seus cabelos mas, não sinto o que estava acostumado a sentir, já não são os seus cabelos. Acaricio sua pele, mas já não sinto arrepio. Sinto seu cheiro mas, ele não é o cheiro da noite. Tu já não me traz o apetite de viver. Não te amo, amo uma pessoa inventada e tu já não me serves para viver os dias. Por isso, hoje quero ver os olhos de quem eu vi, mas não vejo mais. Quero ver-te em reflexo no meu espelho. Então, para sonhar, espirro seu perfume em meu travesseiro. Acordar é a parte mais difícil. Ninguém ao meu lado. Apenas silêncio e em minha janela – um pouco de chuva. Sons? Apenas o ladrar de cães atormentados por gatos que se fingem de demônios para visitarem o inferno. E sei... sei que se foi para sempre... e não preciso esperar mais pelo amanhã...

Tomo um banho, me visto... e mais um dia de trabalho aguarda o toque de alguém para curar, o que ninguém nem imagina a ser curado...

Declínio (Tiago Villano)


No decorrer da história, o ser humano foi surpreendido com a supervalorização da tecnologia: as ciências passam a fornecer ao homem respostas que o tranqüilizem, inaugurando um modo de investigar e conhecer o mundo. Procurando encontrar um ponto de apoio seguro em que possa basear todo o conhecimento e dar-lhe estabilidade, linearidade, para isso se utiliza da razão, lógico-matemática. Apoiando o conhecimento na razão, a tradição ocidental acredita poder torná-lo preciso, claro e estável. Sendo então, capaz de fornecer ao homem respostas definitivas, e findar aparentemente com sua angústia. A partir de então, por meio do conhecimento científico e da técnica, o homem procura prever e controlar o mundo, a natureza, os fenômenos sociais, a opinião pública, o comportamento das massas e das pessoas.


Com isso o Homem deixa sua condição de vir-a-ser e passa a ser objetivizado, isto é, passa a ser tratado como objeto. Não se espera mais compreendê-lo, mas explicá-lo. Se é reduzido, com isso, à hormônios, instintos animais, aprendizagens sociais, pulsões inconscientes e toda a sorte de determinações biológicas, psicológicas, sociais ou uma soma informe de tudo isso. Assim passa-se a se consolidar ao longo da história a crença de que somente o conhecimento científico e a razão podem fornecer as verdades e respostas de que o homem precisa, buscando-as fora do Homem.

O Homem é um herdeiro tardio de um paradigma, de um modo-padrão de pensar a questão do ser e que orientou toda a história da civilização ocidental. Resumidamente pode-se dizer que se trata de um modo que coloca o homem no centro dos entes. Ele controla, mensura, domina os entes à sua volta a todo o custo, e acredita que pode isso. Faz isso para querer dar conta da angústia, da insegurança, e da transitoriedade que é a vida, passa a viver por uma ânsia de novidades, ansiando o topo da montanha.


Herda-se um modo de pensar. Se for ensinado a habitar o mundo pela razão, lógico matemático. Logo, tudo o que não pode ser mesurado, clarificado e objetivado por meio de certezas passa a ser esquecidos ou descartado, tudo deve ser claramente explicável. Descarta-se Deus, abandona-se o sagrado. Assim, passamos a perceber e a nos dar conta de que o máximo controle sobre a natureza e suas forças é o descontrole máximo sobre a nossa sobrevivência... E tão logo o declínio do Ecossistemas.

Escravos do Artifício?


. “Quem não obedece a si mesmo é regido por outros. É mais fácil, muito mais fácil, obedecer a outro do que dirigir a si mesmo” (I. Yalom)

Responsabilidade e Diluição (Tiago Villano)


Heidegger, pontua que estar só é a condição original de todo ser humano e o nascimento seria o ponto inicial do lançar-se no mundo, à própria sorte. O que distinguiria cada indivíduo é a forma como cada um lida com a solidão, o sentimento de liberdade ou de abandono que dela decorre. Para isso, há de se considerar o modo como se interpreta a origem de sua existência, nos deparamos com dois movimentos básicos: o autêntico e o inautêntico.


No primeiro estilo, o indivíduo aceita a solidão como o preço da sua própria liberdade. Assume a responsabilidade por todas as suas escolhas existenciais, aceitando correr os riscos que forem necessários para atingir os seus objetivos; encontrando amparo e segurança em si mesmo. Com isso, se torna Sujeito, apropriando de sua existência, tornando-se indivíduo autônomo, dono da própria vida.


Já no segundo, a solidão é interpretada como abandono, uma desconsideração de “Deus” ou da vida em relação a ele, não assumindo as responsabilidades sobre suas escolhas. Não aceita correr riscos para atingir seus objetivos, nem se sente responsável por sua existência. Assim, busca amparo e segurança nos outros, nas instituições ou nos grupos. Abre mão de sua própria existência, tornando-se um estranho para si mesmo, colocando-se a serviço dos outros e diluindo-se no impessoal. Permanece na vida sendo um coadjuvante em sua própria história.

Muitas pessoas hoje, sentem dificuldade de estarem a só consigo mesmas. Não conseguem viver intensamente a sua própria vida ou acreditam que o brilho e o encantamento da vida se encontram no outro e não nelas mesmas. Com isso, esquecem e não se dão conta de que sua vida tem por si só um encantamento, um brilho, algo de especial porque é sua, apenas sua; justamente pelo fato do ser humano ser único.


Se a solidão é uma condição inerente ao ser humano no mundo, não se deve considerá-la como negativa ou que seja preciso acabá-la. Mas sim, aceitá-la, somente isso. Não é preciso preencher este vazio como atividades, trabalhos, hobbies ou permitir que a angústia tome conta desta sensação ou suprimi-la. Como a angústia mostra de maneira mais nua a inospitabilidade do mundo e isso causa um estranhamento, a possibilidade de se refugiar nas manifestações da massa parece sedutora, pois se poderá ter a ilusão de que não se é estranho, as coisas não estão estranhas e, evidentemente, aqui estará amparado, protegido, sentindo-se pertencente, acolhido.


Como o desconhecimento do mundo e das certezas universais é suspenso vez por outra pela visita inesperada da angústia, aceitar-se ser guiados por outros, permite abrir mão da responsabilidade, o que conseqüentemente o livra aparentemente da culpa, da solidão e da incerteza de ir à busca das escolhas. Mas cedo ou tarde teremos de nos encontrar com nós mesmos e se suprimimos nossa singularidade e responsabilidade, teremos consequências: - Pânico? Fobias? Depressão? Talvez... mas não ser fiel a nós mesmos acarretará em um preço, cedo ou tarde.

Deslocamento


Céu e terra pertencem-se mutuamente, e todos os elementos da natureza, à medida que aparecem revelados e abrigados nessa pertença, também dela compartilham. No caso do homem, esse modo de pertença em que se cria uma inexorável integração é impossível; a vida humana está em perpétuo deslocamento. Viver como homens é jamais alcançar qualquer fixidez. (Dulce Critelli)

Ajuda




“O homem é essencialmente necessitado de ajuda, por estar sempre em perigo de se perder, de não conseguir lidar consigo”. (Rollo May)

Voar... Pra onde?


“Qual ansiedade que me faz desejar voar para as asas de uma autoridade, e qual problema que eu estou procurando fugir?” (Rollo May)

Solidão (III)


Falando novamente em solidão, torna-se cada vez mais evidente que ela não é, na realidade uma coisa que nos seja possível tomar ou deixar. Somos nós (Rilke).

Fábula da Criação (de Esopo)


Certa vez, atravessando um rio, Cuidado viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a lhe dar forma. Enquanto refletia sobre o que criara, interveio Júpiter. Cuidado pediu-lhe que desse espírito à forma de argila, o que ele fez de bom grado. Como Cuidado quis então dar seu nome ao que tinha dado forma, Júpiter proibiu e exigiu que fosse dado seu nome. Enquanto Cuidado e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu também a Terra querendo dar o seu nome, uma vez que havia fornecido um pedaço do seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno como árbitro. Saturno pronunciou a seguinte decisão, aparentemente eqüitativa: “Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito e tu, Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo”. Como, porém foi o Cuidado quem primeiro o formou, ele deve pertencer ao Cuidado enquanto viver. (Heidegger).

Horas


Entrar em si mesmo, não encontrar ninguém durante horas – eis o que deve saber alcançar. (Rilke)

8 Normas de Conduta para o Cidadão Moderno (C.Calligaris)


por Contardo Calligaris


1. Você pode escolher entre ficar em casa ou pegar a estrada e, sem dúvida, faz e fará um pouco dos dois. Mas, quando estiver em casa, tente não sonhar com a estrada e, quando estiver na estrada, tente não lamentar o calor do lar. Vivemos de sonhos e de nostalgias: é necessário cuidar para que essa alternância não nos mantenha constantemente afastados do momento presente.


2. Quando alguém pedir esmola ou ajuda, dê (na medida de seu possível) o que está sendo pedido. Não tente moldar o desejo de quem pede, oferecendo pão e leite em vez do trocado. A humanidade dos mais desprovidos se refugia e resiste justamente na capacidade de continuar desejando o supérfluo.


3. Todos os pedidos podem ser recusados, mas devem ser, ao menos, reconhecidos. Portanto é proibido recusar sem falar.


4. Trate como íntimo só quem poderia sem riscos lhe devolver a mesma cordialidade.


5. Caso você pretenda mudar o mundo, lembre-se de que, provavelmente, você não está à altura do mundo mudado segundo seu desejo. Se pretende transformar seu parceiro ou sua parceira, lembre-se de que você, provavelmente, não está à altura do parceiro ou parceira assim transformados. Quem quer mudar as coisas facilmente esquece de contar-se entre os itens a serem mudados.


6. Qual é a melhor viagem: visitar as capitais européias num “tour” de 15 dias ou passar duas semanas numa cidade só e conhecê-la um pouco? É mais interessante manter um casamento complicado do que multiplicar as ou os amantes. O mesmo vale para os amigos e relações em geral.


7. Uma vez por semana, durante uma hora, sente-se numa esquina de sua cidade e contemple os passantes. Tente imaginar a variedade das vidas, a dignidade de todas. Se você tem filhos, faça o exercício duas vezes por semana: será de grande ajuda para aceitar que a vida deles vale a pena, mesmo se não corresponde em nada aos seus sonhos.


8. Considere como verdade absoluta que é possível ter uma vida boa e justa sem acreditar numa verdade absoluta.


*publicado originalmente no suplemento “Mais!”, da Folha de S.Paulo, de 13/10/2002.

Um Ano Feliz e Desconfiado (Contardo Calligaris)


Por Contardo Calligaris - Colunista da Folha de São Paulo


SE VOCÊ quer começar o ano com o pé direito (ou seja, como é costume, com alguns bons propósitos), não perca "Um Homem Bom", de Vicente Amorim. O filme, uma produção anglo-alemã, traz para a tela "Good", de C. P. Taylor -peça de 1981, que é uma das grandes meditações literárias sobre a poltronice que pode levar qualquer um às piores cumplicidades.


Viggo Mortensen é o professor Halder, que, na Berlim dos anos 1930, ensina Proust na universidade e se deita regularmente no divã de um psicanalista freudiano. Junto a seu psicanalista (que é judeu e é também seu melhor amigo), Halder observa o nazismo incipiente com um sarcasmo que se torna desgosto quando os livros de seus autores preferidos são destinados à fogueira.


Em suma, tudo prepara Halder para ser um dissidente (eventualmente morno e pouco heroico, mas, mesmo assim, um dissidente). Ora, eis que, um belo dia, a Chancelaria do Terceiro Reich se interessa por um romance que Halder publicou sem grande sucesso. Nele, é narrada a história de um homem cuja amada sofre de uma doença terminal; por amor, o homem aceita ajudá-la a pôr fim a seus dias. A Chancelaria pede a Halder um ensaio que sirva de fundamento moral para os projetos de "eutanásia" que o regime nazista, "caridosamente", está concebendo para doentes mentais e deficientes graves -na verdade, para todos os "subumanos". Halder não quer o mal de ninguém - ainda menos o de seu amigo judeu. Mas, aos poucos, ele é enredado numa malha de sentimentos pequenos, banais e dificilmente resistíveis: vaidade, ambição, medo e, talvez sobretudo, preguiça e inércia.


Tornando-se membro do partido e da SS, Halder pode festejar sua promoção: ele é agora chefe de seu departamento universitário. Claro, no dito departamento, não se ensina mais Proust. Também, em sua ascensão, Halder substituiu um colega judeu; é uma pena, mas, afinal, se não fosse Halder, seria outro, não é? Assim, à força de covardias aparentemente triviais, homens "bons" e comuns se tornam cúmplices de horrores dos quais, sem mentir propriamente, eles poderão dizer que "não sabiam", "não imaginavam" nada disso.


Ou, melhor ainda, sem mentir propriamente, eles poderão dizer que, se tivessem sabido, se tivessem sido informados, aí sim, eles, "obviamente", não teriam concordado, sua oposição teria sido explícita e vigorosa, mesmo que isso colocasse a perder sua carreira e sua vida. Alguém observará: o fascismo e o nazismo foram derrotados na Segunda Guerra Mundial, e o sistema soviético desmoronou com o Muro de Berlim -por que é que a gente se debruçaria a esta altura sobre a facilidade de nossa complacência com os totalitarismos?


Seria possível responder que a lista é longa dos totalitarismos, grandes e pequenos, que continuam vivos ainda hoje, e não muito longe de nossa casa. Mas o mais importante é que a complacência com o totalitarismo segue sendo a chave mestra que explica quase todas as patologias de nossa relação com as coletividades (nações, torcidas, religiões, culturas, partidos etc). Claro, pertencer a um grupo e se deixar levar por ele é sempre menos cansativo do que decidir por nossa conta. A ponto que as razões para aderir ao grupo se tornam indiferentes: o que importa é o conforto que o grupo oferece a seus membros.


Em outras palavras, para não ter que pensar e agir sozinho, o homem "bom" topa qualquer parada. Por exemplo, pertencer ao partido nazista alivia seriamente meu dever (incômodo) de pensar e agir segundo meu foro íntimo; aceito ser antissemita, homofóbico, defensor da supremacia ariana etc. tanto mais facilmente que tudo isso, no fundo, pouco me importa: é apenas um pedágio que pago para ser membro do clube.


Paradoxo crucial: um grupo pode se unir ao redor de uma ideologia ou de uma convicção na qual quase nenhum de seus membros, em sã consciência, acredita, mas que todos compartilham apenas PARA constituir um grupo - ou seja, pelo prazer de sair quebrando vitrinas, linchando negros e "bichas", torturando calouros, apedrejando o ônibus da torcida oposta. E qual é esse "prazer"?


Simples, é o prazer de esquecer a dificuldade de viver, tirando das costas o fardo e a responsabilidade de julgar com a nossa cabeça. Pois bem, aqui vão meus votos de um Ano-Novo corajoso, livre das pequenas (e terrificantes) complacências do nosso dia-a-dia.


deserto


São horas talvez de eu fazer o único esforço de eu olhar para minha vida. Vejo-me no meio de um deserto imenso. Digo do que ontem literalmente fui, procuro explicar a mim próprio como cheguei aqui (Fernando Pessoa)

Intimidade


A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade...
(Manuel de Barros)

A Hora


A morte é então uma longa e dolorosa história, e não apenas o drama de uma hora fatal.
(Gaston Bachelard)

Sorvedouro (Tiago Villano)


Você já rezou para que o dia não amanhecesse? Já pediu o mais alto, a Deus ou a si mesmo para que não houvesse amanhã? Qual peso o desse desejo funesto, sincero e humano? Qual dor? Às vezes o peso de existir? O ser? O tempo? O tic-tac da incandescência. O instante onde o mundo em vão se ilumina: nascimento. E a última possibilidade, a última realização: finitude, despedida. O relógio só existe porque o ensinamos a dar corda. Mas existe um relógio interno, maior. O relógio do mundo. Esse é eterno, cíclico, espiral... Tão logo vem o sorvedouro da existência para trazer o tempo a devorar seus filhos. E mesmo embora sejamos finitos, esse intervalo entre vida e morte é capaz de modificar o percurso de águas. Pode cultivar a vida e celebrar seu fim. E é aos seus ponteiros que devemos prestar atenção... (quais atalhos percorrer? seguir caminhos já traçados? ou abrir espaços na mata inexplorada?)

O caminho do Campo (Heidegger)

Mais freqüentemente com o correr dos anos, o carvalho a beira do caminho leva à lembrança aos jogos da infância e as primeiras escolhas. Quando, às vezes, no coração da floresta tombava um carvalho sob os golpes do machado, meu pai logo partia, atravessando a mataria e as clareiras ensolaradas, à procura do estéreo de madeira destinado à sua oficina. Ela lá que trabalhava solícito e concentrado, nos intervalos de sua ocupação junto ao relógio do campanário e aos sinos, um e outro, mantém relação própria com o tempo e a temporalidade (...) Tudo se passava com se sua discreta solicitude velasse sobre todos os seres (...)
Entrementes, a consistência e o odor do carvalho começavam a falar, já perceptivelmente da lentidão e da constância com que a árvore cresce. O carvalho mesmo assegurava que só semelhante crescer significa: abrir-se à amplidão dos céus, mas também deitar raízes na obscuridade da terra; que tudo que é verdadeiro e autêntico somente chega à maturidade se o homem for simultâneamente ambas as coisas: disponível ao apelo do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra que oculta e produz.
Isto o carvalho repete sempre ao caminho do campo, que diante dele corre seguro de seu destino.
O caminho recolhe aquilo que tem seu ser em torno dele; e dá a cada um dos que o percorrem aquilo que é seu. Os mesmos campos, as mesmas encostas da colina escoltam o caminho em cada estação, próximos dele com proximidade sempre nova. Quer a cordilheira dos Alpes acima das florestas se esbata no crepúsculo da tarde, quer de onde a cotovia de manhã se lança ao céu de verão (...) que o lenhador carregue, ao cair da noite, seu feixe de gravetos para a lareira, quer apanhem as crianças as primeiras primaveras na ouréla do prado, quer passeie a neblina ao longo do dia sua sombria massa sobre o vale, sempre e de todos os lados fala, em torno do caminho do campo, o apelo do mesmo.
O simples guarda o enigma do que permanece e do que é grande. Visita os homens inesperadamente, mais carece de longo tempo para crescer e amadurecer. O dom que desperta está escondido na inaparência do que é sempre o mesmo. As coisas que amadurecem e se demoram em torno do caminho, em sua amplitude e em sua plenitude dão o mundo. Como diz o velho mestre Eckhart, junta a quem aprendemos a ler e a viver, é naquilo que sua linguagem não diz que Deus é verdadeiramente Deus.
Todavia, o apelo pelo caminho do campo fala apenas enquanto homens nascidos no ar que o cercam forem capazes de ouví-lo. São servos de sua origem, não escravos do artifício. Em vão o homem através de planejamento procura instaurar uma ordenação no globo terrestre, se não for disponível ao apelo do caminho do campo. O perigo ameaça, que o homem de hoje não possa ouvir sua linguagem. Em seus ouvidos retumba o fragor das máquinas que chega a tomar pela voz de Deus. Assim o homem se dispersa e se torna errante. Aos desatentos o Simples parece uniforme. A uniformidade entendia. Os entendiados só vêem monotonia a seu redor. O simples desvaneceu-se. Sua força silenciosa esgotou-se.
O número dos que ainda conhecem o Simples como um bem que conquistaram, diminui, não há dúvida, rapidamente Esses poucos, porém, serão em toda parte, os que permanecem. Graças ao tranqüilo poder do caminho do campo, poderão sobreviver um dia as forças gigantescas da energia atômica, que o cálculo e a sutileza do homem engendraram para com ele entravar sua própria obra.
O apelo do caminho do Campo acorda um sentido que ama a liberdade e, no lugar oportuno, suplantará as aflições numa ultima serenidade. Esta se opõe a desordem de só trabalhar, uma desordem que, buscada por si mesma, favorece o nada negativo.
No ar do caminho do Campo, variável com as estações, nasce e se cria uma jovialidade sábia, cujo semblante muitas vezes parece carregado. Este saber jovial é a *Serenidade. Quem não a possui não poderá adquiri-la e quem a possui é do caminho do Campo que a tem, em sua via se encontram a tormenta do inverno e o dia da colheita, em sua via se cruzam a mobilização estimulante da primavera e o fenecer tranqüilo do outono...
A Serenidade sábia é uma abertura para o eterno. Sua porta gira nos gonzos que um hábil ferreiro forjou, um dia, com os enigmas da existência.
Uma vaga luminosidade desce das estrelas es e espraia sobre as coisas. Vagarosamente, quase hesitantes, soam as badaladas das onze horas, desfazendo-se no ar noturno. O velho sino, em suas cordas outrora mãos de menino se aqueciam rudimente, treme sobre o martelo das horas, cuja silhueta jocosa e sombria ninguém esquece.
Após a última batida, o silêncio ainda mais se aprofunda. Estende-se até aqueles que foram sacrificados prematuramente em duas guerras mundiais. O Simples torna-se ainda mais simples.
O que é sempre o Mesmo desenraiza e liberta. O apelo do caminho do campo é agora bem claro. É a alma que fala? Fala o mundo? Ou fala Deus?
Tudo fala da renúncia que conduz ao Mesmo. A renuncia não tira. A renúncia dá. Dá a força inesgotável do Simples. O apelo faz-nos de novo habitar uma distante origem, onde a terra natal nos é devolvida.

*obs: “Sapiente Serenidade”, algo que se aproxima do termo em volga “alegria que se sabe”. Designa hoje, um estado de serenidade, livre e alegre, que gosta de dissimular, marcada por uma ironia afetuosa e um toque de melancolia sorridente. Heidegger quer aqui, neste momento, um retorno ao termo serenidade.
(Martin Heidegger)

O que é a Perfeição?


Corpo perfeito... perfeito que as pequenas imperfeições que um olhar escrutinador pode notar aqui e ali só acentuam a harmonia do todo – PORQUE É ATRIBUTO DA BELEZA CONTER DEFEITOS QUE, AO SE DILUÍREM NELA, SÓ AUMENTAM O EFEITO DO QUE É BELO. (Mario Sabino)

De Escuridão e Clarões


Tomava o café e pensava sem palavras: meu Deus, e dizer que é noite plena e que eu estou plena da noite grossa que escorre com perfume de amêndoas doces. Com um amor feito de escuridão e clarões... (Clarice Lispector)

Alegria


Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a vida possível.temos disfarçado com falso amor nossa indifenença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos o que realmente importa. (Clarice Lispector)

Mulher


Seus cabelos de manhã lavados e secos ao sol do pequeno terraço estavam da seda castanha mais antiga – bonita? Não, mulher: passou perfume na testa e no nascimento dos seios – a terra era perfumada com cheiro de mil folhas e flores esmagadas. Usava um perfume levemente sufocante, gostoso como húmus. Usaria brincos? Hesitou, pois queria orelhas apenas delicadas e simples, alguma coisa modestamente nua... (Clarice Lispector)

Mistério


A reza era um meio de mudamente e escondido de todos atingir-me a mim mesmo. Quando rezava conseguia um oco de alma – e esse oco é o tudo que posso eu jamais ter. Mais do que isso, nada. Mas o vazio tem o valor e semelhança do pleno. Um meio de obter é não proucrar, um meio de ter é o de não pedir e somente acreditar que o silencio que eu creio em mim é resposta a meu – a meu mistério. (Clarice Lispector)

No Meu Jardim (Tiago Villano)


Regando as plantas de meu jardim, percebo que não estou só. Estamos todos! E essa constatação, traz um pouco de desconforto, talvez desamparo. E amparo-me em meu desamparo. Sempre há algo onde nos apoiar. E o apoio de si, o apoiar-se em si mesmo é o único que não lhe traz o risco e a dor da dependência.

Volto a distrair-me e recordo-me: - É triste não termos o alimento, o alimentar-se de um grande amor? Mas, em termos de nossa vida diária, resignada a banalidades cotidianas, o verdadeiro alimento não é fácil de se encontrar, mas virá no seu tempo como as flores e frutos das estações. Mas o risco iminente é: toda história de amor termina em tristeza, silêncio e chuva. Vale a pena?

Seria o preço da lucidez - o desespero? A realidade maior é que não suportaríamos olhar por muito tempo para nossas verdades. Quem consegue olhar para o abismo e carregá-lo nas costas? Talvez devêssemos construir mais sentidos para o viver, que não o prazer, o amor, os desejos ou a felicidade inalcançável de seres embriagados pelas ilusões efêmeras de fantasias infantis. O final da história? Nunca termina no "felizes para sempre". Nisso, a citação: - “O mundo é uma festa que termina em morte e em cheiro de cravo murcho na lapela...”. (Clarice Lispector)