Reflexões



"Afirmar é enganar-se na porta. Pensar é limitar. Raciocinar é excluir. Há muito que é bom pensar porque há muito que é bom limitar e excluir" (Fernando Pessoa)

"O rigor da ciência matemática é a exatidão... Ao contrário todas as ciências do espírito e até todas as ciências do ser vivo para permanecerem rigorosas, precisam justamente ser inexatas. Pode-se, de fato, apreender também o ser vivo como uma grandeza espácio-temporal do movimento, mas nesse caso não se apreende mais o vivente". (Heidegger)

C.Calligaris


(...) Desconfio de partidos, grupos e aglomerações; mais especificamente, desconfio das falsas concordâncias que surgem entre os membros de partidos ou grupos. Sempre receio que o grupo me tire a coragem de pensar diferente e declarar a divergência. A única coisa que ... me parece provar é que preferimos a tranquilidade de viver concordando com os amigos à tarefa solitária de pensar por nossa conta (...)

Heidegger


A vontade de querer tudo enrigece numa ausência de destino. O correto e o exato dominam o verdadeiro e marginalizam a verdade. A vontade do asseguramento incondiscional faz aparecer a insegurança em todos os níveis (Heidegger)

Os Eremitas Urbanos (Arthur Tufofo)

Os Eremitas Urbanos (Arthur Tufofo)

A etimologia revela a origem das palavras e costuma libertar o sentido daquilo que se quer investigar. Sendo assim, comecemos.


Eremita: do grego eremités; pelo latim eremita –s.m. pessoa que vive no ermo.


Ermo: do grego éremo; pelo latim eremu –s.m. lugar sem habitantes, deserto, descampado, desolado;adj. solitário, desabitado, desertificado (desamparado?).


Ermo: s.m. pop. elmo - 1. armadura antiga para cabeça, espécie de capacete;2. crosta escura que se forma na cabeça das crianças por falta de limpeza.


Possuir uma existência (acontecência) desertificada, e viver em uma "toca" para não ser tocado. Entocar-se parece ser o modo de isolamento preferido para o desolado. Podemos a partir disso começar a perguntar por essa pessoa. Quem é esse que se torna um ermitão? Será que o faz por escolha? De que precisa ele se isolar em seu desolado reduto deserto? O que o ameaça tão visceralmente? Refiro-me a esses inumeráveis casos de pessoas que vivem entocadas em suas ‘residências-colméias’ espalhadas pelas metrópoles do mundo. Desconheço estatísticas brasileiras. No Japão já passam de 1,2 milhões e são chamados de ‘hikikomoris’. Há pouco tempo foram notícia trágica no mundo, pois nove deles se juntaram usando a Internet como ponte de comunicação e promoveram um suicídio coletivo.Os que conheci aqui pelo Brasil, entre amigos, pacientes e outros tantos, de tantos tipos, eram prisioneiros (nem todos) de um modo de existir, emocionalmente falando, em que somente o acuar-se, o retirar-se do mundo dentro do próprio mundo permitia um mínimo de pouso sem nenhum repouso, sem paz de espírito (mas afinal quem a tem de verdade?).


Alguns até que se cuidam muito bem, não estão tão comprometidos, mas simplesmente não acham que vale a pena conviver com todos nos moldes mais corriqueiros do dia a dia.Outros são ‘bernardos-eremitas’. Há no mar um crustáceo de nome curioso: bernardo-eremita é um tipo de lagostim que possui a parte anterior do corpo completamente sem proteção de carapaça. Ele é em carne viva, justo na retaguarda onde está mais vulnerável. Para se proteger, procura conchas que outrora foram moradas de moluscos. Ao encontrá-las, ele se enfia nelas pelas costas, e pronto: carrega consigo a armadura para se proteger de agressores.Todos nós, de alguma forma fazemos isso. Nossa pele, nossas roupas, nossas couraças musculares, nosso intelecto, etc., etc., nossa auto-estima. Usamos tudo isso para nos proteger.


Protegemos principalmente o que é em nós carne viva. Às vezes conseguimos um exoesqueleto tão duro que corremos o risco de calcificar. Podemos endurecer por fora e por dentro e até sofrermos, por exemplo, um enfarto, mas isso é assunto para um outro artigo.


Às vezes podemos usar a proteção de um outro ser, usá-lo como concha- prótese para nos amparar. Outros, como aponta Yves Leloup em seu ‘Deserto Desertos’, retiram-se para forjar no silêncio a própria identidade, à medida que se despojam de si mesmos e enfrentam seus demônios. O deserto é um lugar propício para um intenso encontro consigo mesmo.


Outros, ainda bem mais comprometidos, não têm outra opção que não o recuo para suas fronteiras, que muitas vezes coincidem com a porta de seus quartos. Costumam dormir durante o dia, habitantes das trevas, longe do tumulto. Internet e televisão nas madrugadas são seus contatos com o mundo de fora. Podemos pensar que esse modo de existir possui características peculiares. Ele envolve medo, angústia e ansiedade. Neste sentido, muitas vezes esse modo afinado de estar no mundo tem muitas características da síndrome do pânico, tão comum e epidêmica nos nossos dias.


O medo é de quase tudo e de todos (incluindo de si mesmo). A angústia parece não estar presente. A ansiedade é a verdade do medrar.


Aquilo de que se teme estar diante sempre é, como diz Heidegger, um algo que vem ao encontro dentro do mundo: “...O que se teme possui o caráter de ameaça... Esta sempre adviria de uma determinada região e esta e o que vem dela como temível possui a não familiaridade... O que ameaça nunca se acha no medo, numa proximidade dominável, ele se aproxima” (Heidegger M. -SER E TEMPO Petrópolis,Vozes pg-195). A experiência é de estar impotente em relação à ameaça. Afinado e determinado pelo medo, esse existir se encontra aprisionado por essa armadilha. O medo desvela esse ente-homem no conjunto de seus perigos, no abandono de si mesmo. Responsável completamente por si e sem ainda possuir recursos para lidar com tal grau de ameaças, esse ser humano só encontra possibilidade de sobrevivência dentro do que ainda se preserva como familiar: SUA TOCA! Se nos reportarmos às suas histórias pessoais detectamos que os cuidados paternos de alguma forma foram negados ou insuficientes. O psiquiatra japonês, Dr. Tamaki Saito, refere-se assim à DDAP - Distúrbio de Deficiência da Atenção do Pai - como um motivo comum que traria essas conseqüências para esses eremitas.Mas não nos enganemos: filhos criados sob intensos cuidados também apresentam esses sintomas. Não raro podemos encontrar, na verdade, várias maneiras de um não cuidar. Usar um filho como resposta às próprias necessidades pode ser até mais prejudicial do que abandoná-lo. Muito ajuda quem pouco atrapalha é um ditado bem conhecido por todos. Mas, muitas vezes, para os envolvidos, essa é a única forma de relacionamento possível naquelas circunstâncias específicas. Segundo Winnicott, fazer mal a alguém é não estar lá quando ele precisa de você. Mas, é claro, deve-se ressaltar que esse estar presente deve contemplar a necessidade do ponto de vista daquele que requer sua presença. Isto implica em reconhecimento do outro como outro, uma alteridade.


Cuidar para me encontrar com o outro em sua singularidade. Isso me forçaria, me convocaria para meu próprio ser singular, e aí posso acolher o outro numa ‘solicitude devoluta’ (Heidegger M-SER E TEMPO Petrópolis,Vozes pg-173), que não impõe suas carências nem impõe a mim (o outro) a culpa por não preenchê-las. Costuma-se brincar dizendo-se: “menino, ponha a blusa porque sua mãe está com frio”. Pode parecer a primeira vista um cuidar, um cuidar talvez excessivo, mas de qualquer modo isso sugere como aquele que ainda não dá conta de sua própria existência e que portanto depende de cuidados alheios pode, desde ao se tratar de uma bobagem como usar ou não uma blusa, até questões mais importantes e fundamentais para sua existência, ser impedido de se constituir em sua singularidade, o que pode levá-lo a sucumbir diante das exigências do mundo, por não contar consigo de forma suficientemente confiável para arcar com o que ele entende que terá que constituir como resposta.


Sendo assim, acompanhamos esses que se recolheram, indo até eles lá, onde se encontram e, uma vez autorizados a ali permanecer, suportando esse estar ao lado. Isto pode e é uma excelente proposta de abertura de um espaço para a terapia.Mas isso não será possível. Um contato real não se estabelecerá senão a partir da experiência de si mesmo como eremita. Preciso, antes de mais nada, de um contato íntimo comigo mesmo, (re)conhecer em meu deserto os meus abismos, em minha solidão os meus demônios. Só poderei compreender aquilo que, em minha própria alma, não me for estranho e ainda assim, paradoxalmente, o outro permanecerá completamente outro em sua experiência.


Em outras palavras, é preciso que eu possa me bastar. Mas, o que isto quer dizer? Aí vai mais um recurso etimológico: bastar vem do germânico bastázo que significa sustentar, e do latim vulgar bastare, ser bastante, suficiente, ter suficiência própria. Neste sentido apenas quando me basto, posso então abrir espaço (bastante) para qualquer outro poder ser a partir de mim. Pois me sustento e isto cria um campo de presença que não pressiona, apenas convida de forma mais ou menos isenta. Mais cedo ou mais tarde, se for possível, o outro se tornará independente e voará com as próprias asas escolhendo em liberdade aonde deseja habitar: se junto aos outros ou solitariamente. Neste caso, a diferença agora é que ele estaria escolhendo não ir para o mundo, podendo tomar conta de si. Escolher e realizar seu próprio destino. Algo que antes só podia visitar em suas fantasias.


A idéia, então, é a de que alguém que aprendeu a nadar vá em busca do afogado, mergulhando profundamente no mesmo mar, arriscando-se ao mesmo afogamento e em companhia, apenas em companhia envolvida e comprometida, possa abrir um espaço que se tornará útil para que este outro ouse braçadas salvadoras. Enquanto isso, interferir apenas para garantir que o outro não morra é a única licença à regra: muito ajuda quem pouco atrapalha. Neste ponto gostaria de continuar apenas levantando questões. O que quer dizer escolher ser um eremita para ajudar outros? O que é mesmo fazer uma viagem interior para saber de si mesmo? O que acontece nessa viagem para que milenarmente se afirme que isso seria suficiente para proporcionar sabedoria e transformá-la em ferramenta para abrir tantas portas? Por que todos continuam a afirmar (menos nossa ciência metafísica) que só eu é que posso ter o poder de curar a mim mesmo? Recebo ajuda para não me afogar, mas só eu posso continuar minhas braçadas.Enfim acho que pilhas de perguntas podem continuar sendo colocadas, muitas delas para as quais temos ilusão de possuir as respostas; outras devem continuar resistindo ao imenso mistério que somos.


Um bom homem verdadeiramente interessado em si e nos outros conta com isso.


ARTHUR TUFOLO CRP é Psicoterapeuta clínico desde 1.979. Professor, coordenador e supervisor do Projeto Humanitas. Psicoterapeuta e orientador familiar do Projeto Humanitas. Supervisor, coodernador e orientador da equipe clínica do Instituto Cisne.

Neurose do Tédio (artigo)

Neurose do Tédio (Dr. Solon Spanoudis)

No "dicionário de psicologia", traduzido do "Vocabulário de la Psicologia" de Henri Piéron, de 1951, encontramos, entre outras, as seguintes definições de neurose:

- "Afecção mental que se caracteriza por perturbações funcionais, sem comprometimento da personalidade";

- "A neurose é constituída por sintomas somáticos, negativos e positivos, resultantes da falta de descarga de uma impulsão, sem intervenção dos mecanismos de defesa específicos na formação dos sintomas psiconeuróticos";

-"Neurose narcisista; Regressão que torna a transferência difícil, pois a libido é retirada dos objetos e investida de ego".

Será que definições, como psique, corpo, mente, que decompõem o ser humano num mosaico de noções objetivadas, abstratas, autônomas, nos ajuda a compreendê-lo? Será que o indivíduo neurótico não nos revela na sua fisionomia, na sua postura, nos seus movimentos, nos seus pensamentos, sentimentos, nas suas vivências e na sua visão de mundo, algo mais do que perturbações funcionais, descarga de impulsos e desvio de libido?

Todo ser humano neste mundo, por isso também o neurótico, é uma abertura para o mundo; existe a seu modo, com todas as suas peculiaridades; assim precisamos observar e compreendê-lo na sua integridade humana. Uma das suas manifestações que se destaca hoje em dia com grande freqüência é o tédio. É por isso que Medard Boss já há muitos anos se viu obrigado a formular o conceito da "Neurose do Tédio", esse mal que é tão típico para nós homens atuais como o foram as neuroses histéricas no tempo de Freud.

O que significa a palavra "tédio"? Este termo procede do latim: tædium, do verbo tædere, e nos dicionários é traduzido como fastio, desgosto, aborrecimento, dissabor, enjôo, repugnância, tudo que enfada, molesta, cansa, incomoda. "Tædium movere si" (tacito) significa: tornar-se enfadonho a si mesmo. Em inglês: tediousness,tiresomely long or slow from dullnes, bored (cansativamente longo ou lento). Em alemão: langweiligkeit (tempo vagaroso, longo). Em francês: ce qui est fastidieux.


No grego antigo, além da palavra ANIA (anía) que corresponde ao significado, tédio, existe também a palavra - THTH (titi) do verbo titaome, que significa falta de algo, escassez. Insistimos nas definições e na etimologia da palavra, não por razões escolásticas, mas captar tanto quanto possível o que nos revela, nos comunica. No tédio existe o aborrecimento, o desgosto, a falta de algo e, especialmente no alemão e no inglês, é ressaltada nitidamente, a vivência do tempo que fica estagnado. Mas não somente o tempo vivencial se altera, também o espaço se torna mais reduzido no sentido do desgosto, enjôo, na falta de iniciativa. Salientamos que estas vivências imediatas do tempo e do espaço são originárias. Os conceitos físico-matemáticos são procedentes delas e nunca, o contrário.


O tédio é um fenômeno que revela tudo que enfada, molesta, cansa, aborrece, incomoda, enjoa e estagna nossa existência. Todos nós em várias circunstâncias vivenciamos o tédio em dias ou horas tediosas. Mas quando o tédio domina e escraviza o ser humano em sua totalidade, então entramos na problemática da Neurose do Tédio.

Preferimos não formular uma definição abstrata e generalizada da Neurose do Tédio, mas tentar esclarecer o que o ser humano dominado pelo tédio nos comunica, nos transmite, nos revela.
Citaremos três breves exemplos de nossa experiência.


Uma pessoa no encontro psicoterápico relatou o seguinte sonho: "Encontrei-me com várias pessoas em frente de um grande objeto semelhante a um escorregador. Uma depois da outra subia e escorregava como se fosse um ritual, como se cumprisse uma obrigação ou praticasse um ato de rotina. Quem comandava todo este jogo era minha mãe."


'À pergunta: - O que lhe ocorre? O que vivencia este sonho? o paciente responde: - É exatamente como minha vida, monótona, tediosa, mecanizada, tudo feito som ânimo.' O fator mãe neste sonho, apesar da sua óbvia importância, não entra aqui em nossas considerações.


Um outro paciente manifestou-se assim: "Sinto-me vazio, pardo, parece que tudo é forçado."
Falado sobre drogas, um outro disse: "Eu e meus amigos tomamos drogas para fugir do vazio que sentimos, para nos livrarmos da monotonia ou do desgosto de viver".


Todas estas revelações eram acompanhadas de grandes sentimentos difusos de culpa, bloqueio do futuro, opressão e falta de iniciativa, além de muitos sintomas psicossomáticos. Nestas manifestações a existência humana está presa na mecanização, monotonia, automatização, estagnação e no aborrecimento.

Por que é que, hoje em dia, estas manifestações reveladoras do tédio e as conseqüentes necessidades de compensação por atividades sensacionais, "stress" contínuo, fuga nas drogas, protestos violentos, geralmente acompanhadas por angústia acentuada, são tão freqüentes e insistentes? Tentamos refletir sobre vários aspectos desta problemática para conseguirmos, pelo menos, uma resposta parcial.


Desde o triunfo das ciências exatas, da deificação do raciocínio matemático, da conquista tecnológica, começou o declínio da religiosidade. Nas civilizações antigas e na idade média, a fé não era um sistema teológico construído, mas a matriz e a raiz da vida humana. Até hoje, nos povos e nas chamadas camadas subdesenvolvidas, o ser humano ainda e capaz de vivenciar o divino, conviver com ele numa comunicação autêntica de EU e TU, dedicando e recebendo afeto, superando assim grande parte da problemática do vazio, do abandono, da angústia e da morte.

Hoje em dia a civilização tecnológica está em pleno desenvolvimento; ao mesmo tempo a religiosidade se desvanece e começa-se o rompimento com o divino, surgindo assim uma nova problemática para o indivíduo. Mas, o que caracteriza a civilização tecnológica industrial, ou melhor, a época tecnocrática? Encontramos a resposta para a questão no desenvolvimento crescente do industrialismo produzindo bens de consumo em grande escala e nas façanhas extraordinárias no campo tecnológico, como por ex. a construção de cérebros eletrônicos que superam , em muito, a capacidade individual do homem no campo de cálculos, coordenação e previsão.

Toda esta atividade pressupõe organizações gigantescas para a planificação e administração e provoca uma expansão dinâmica que, ultrapassando barreiras e fronteiras, abrange todo o globo terrestre. Hoje em dia um país é valorizado unicamente pelo seu grau de sub ou super desenvolvimento, isto é, se está à altura daquelas atividades, qual sua renda per capta, sua produção de bens de consumo, qual o seu poder aquisitivo, etc.

Tanto nos sistemas capitalistas como nos sistemas socialistas estamos num coletivismo tremendo devido ao aperfeiçoamento contínuo dos meios de comunicação, de rádio e televisão, da publicidade e propaganda, à aglomeração humana nas cidades e nas fábricas e à automatização do trabalho. Este coletivismo leva à massificação e objetivização do ser humano. Os meios de comunicação e os produtos de consumo condicionam quase tudo: os modos do homem se comportar, se vestir, e se comunicar; através dos continentes, os costumes e modos de viver se transformam em padrões comuns e slogans substituem o diálogo.

Em 1940, Karl Jaspers já falava das esteriotipias da sociedade moderna como conseqüência da massificação. Nesta situação o indivíduo fica aparentemente protegido através da mediocridade e também da expressão comum "A GENTE" , em vez de "EU" ou "NÓS".
Martin Heidegger escreveu em 1948 no ensaio "O Caminho do Campo" : "O perigo ameaça, que o homem de hoje não mais possa ouvir a sua linguagem. Em seus ouvidos retumba o fragor das máquinas que chega a tomar pela voz de Deus. Assim o homem se dispersa e se torna errante. Aos desatentos o simples parece uniforme. A uniformidade entedia. Os entediados só vêem monotonia ao seu redor. O simples desvaneceu-se."

Não será a perda deste 'simples' o que leva à alienação da própria existência humana? Não será esta alienação em si mesma que desencadeia , no homem, a neurose do tédio e, assim, a mania de experimenta sempre algo diferente, para que ele se liberte da monotonia e da estagnação? Se assim for, o que devemos fazer? Voltar à natureza, abandonar e destruir a nossa tecnologia regredindo até a época das cavernas? Não podemos negar as contribuições óbvias e positivas da civilização tecnológica industrial. Apenas enfrentamos um fenômeno global em toda a sua complexidade e problemática. No seu ensaio "Angústia vital, sentimentos de culpa e libertação psicoterápica", Medard Boss prevê, em 1952, que a neurose do tédio ou do vazio se propagará cada vez mais no futuro próximo.


Queremos focalizar a seguir as manifestações múltiplas da neurose do tédio em alguns fenômenos da nossa época.

Os estudiosos em geral aparecem tensos, com uma expressão artificial, padronizada, preocupados com queixas difusas. Queixam-se da monotonia da vida. Querem solucionar os seus problemas através de palpites, pílulas mágicas e testes vocacionais, e outros recursos fictícios. Tudo isto indica , freqüentemente, uma atitude passiva e a até mesmo uma incapacidade de enfrentar o futuro. A ocupação com rádio e televisão torna-se quase uma atividade compulsiva e a não aquisição rápida dos bens de consumo desencadeia grandes frustrações. O afeto é bloqueado pela agressividade contra si mesmo e contra os outros. Por outro lado, esta alienação em si mesmo provoca grandes cargas de sentimento de culpa e leva à incapacidade de amar no sentido puro e profundo da palavra, acentuando somente o desejo de posse. A maior parte desta problemática fica contida atrás de uma máscara de frieza e inércia.

Repetimos que o tédio se manifesta com muita freqüência e intensidade em nossa época tecnocrática. As características desta época fazem parte dos fatores que Karl Jaspers denominou de 'totalidades'. Como exemplo destas totalidades há os padrões de cultura, estratificação da sociedade, raças, conceitos, tradições, costumes, etc., que existem alheios ao indivíduo. Isso quer dizer que o nascimento ou a morte individual em nada altera essas estruturas, porém a existência individual as reflete, com elas freqüentemente se identifica e a elas escraviza.

Em resumo, todo este breve esboço sobre o declínio da religiosidade, sobre as características da época tecnocrática foi uma tentativa para compreender melhor as manifestações da neurose do tédio, tomando em consideração as estruturas das totalidades atuais de nossa época.

Num dos seus ensaios, Vicente Ferreira da Silva escreveu: "Viver não é reproduzir algo, mas propor-se algo." No seu artigo: "O humanismo na arte moderna" Theon Spanoudis aborda a manifestação da arte moderna como sendo um propor-se-algo-do-homem dentro das estruturas da civilização industrial. Não é necessário querer realizar o 'propor-se-algo' com façanhas extraordinárias, heróicas, destacadas. Somente se conseguir se libertar da massificação e da alienação, encontrando-se a si mesmo, é que o ser humano poderá mobilizar afeto, entrar num relacionamento autêntico de EU, TU e NÓS e se tornar capaz de propor-se algo.

No decorrer de uma psicoterapia tentamos penetrar nas manifestações do tédio e de outras neuroses, através da 'Intimidade compreensível' para a qual - escreveu Edu Machado: 'torna-se necessário um determinado tipo de sensibilidade muito semelhante a do artista onde intuição e criação se fundem na captação do real.'
Conseguir a autenticidade esclarecida da própria existência humana, eis o que se tenta no encontro psicoterápico.

(Texto da Apostila nº. 2 de Daseinsanalyse - 1976. Este trabalho originalmente publicado em 1973, no livro "Medard Boss - Zum Siebzigsten Geburstag" de Gion Condrau.)

Martin Heidegger



A alienação. O homem está fora das coisas, diz Heidegger em seu livro "Ser e tempo", nunca sendo completamente absorvido por elas, mas não obstante não sendo nada, à parte delas. O homem vive, até o fim, em um mundo no qual ele foi jogado. Sendo algo jogado em meio às coisas, estando-lá (Da-sein), constitui algo à parte (Verfall) mas está no ponto de ser submergido nas coisas. É continuamente um projeto (ent-wurf); mas ocasionalmente, ou mesmo normalmente, pode ser submergido nas coisas a tal ponto que é absorvido nelas temporariamente (Aufgehen in).


Entregando-se a uma rotina de superficialidades "públicas" na vida cotidiana. Não é então ninguém em particular; e uma estrutura que Heidegger chama das Man ("o eles") é revelada, como uma tendência da alienação de si mesmo que leva o homem à tendência de se conhecer apenas através da comparação que faz de si mesmo com os outros indivíduos.


A característica do "das Man" (os outros) é a conversa inócua e curiosidade. O que fala e o que ouve não estão em nenhuma relação pessoal genuína ou em qualquer relação íntima com aquilo sobre o que falam, o que, portanto, conduz a superficialidade. A curiosidade é uma forma de distração, uma necessidade para o "novo", uma necessidade para algo "diferente", sem interesse ou capacidade de maravilhar ou se assombrar.


A angústia. Uma coisa pode acontecer que desperta o homem dessa alienação, a angústia (Angst). Ela resulta da falta de base da existência humana. A "existência" é uma suspensão temporária entre o nascimento e a morte. O projeto de vida do homem tem origem no seu passado (em suas experiências) e continuam para o futuro, o qual o homem não pode controlar e onde esse projeto será sempre incompleto, limitado pela morte que não pode evitar.


A angústia funciona para revelar o ser autêntico e a liberdade, como uma potencialidade. Ela enseja o homem a escolher a si mesmo e governar a si mesmo.


Na angústia, a relevância do tempo, da finitude da existência humana, é experimentada então como uma liberdade para encontrar-se com sua própria finitude, um "estar preparado para" e um contínuo "estar relacionado com" sua própria finitude. Na angústia, todas as coisas em que o homem estava mergulhado se afastam, afundando em um "nada e em um lugar nenhum". O homem em meio às coisas páira então, isolado. Ele, na inospitabilidade é incapaz de achar uma casa - amparo, segurança, pois se verá como um forasteiro. Enfrenta o vazio e toda a "rotinidade" desaparece – abrindo-se então, a possibilidade de um modo autêntico de ser.


A angústia segundo Heidegger - "é, dentre todos os sentimentos e modos da existência humana, aquele que pode reconduzir o homem ao encontro de sua totalidade como ser e juntar os pedaços a que é reduzido pela imersão na monotonia e na indiferenciação da vida cotidiana. A angústia faria o homem elevar-se da traição cometida contra si mesmo, quando se deixa dominar pelas mesquinharias do dia-a-dia, até o autoconhecimento em sua dimensão mais profunda." Quando isso ocorre, Heidegger afirma haver duas soluções: ou o homem foge para a vida cotidiana, ou supera a angústia, manifestando seu poder de transcendência sobre o mundo e sobre si mesmo.Assim, a angustia "sóbria" (nüchtern) e a confrontação implicada com a morte são para Heidegger primeiramente ferramentas, têm importância metodológica: certos fundamentos são revelados - abrindo o homem para o ser.


Entre as estruturas reveladas estão as potencialidades do homem para ser alegremente ativo. Pensar o ser é chegar ao verdadeiro lar. Por isso, Heidegger privilegia o futuro, porque é esta projeção para o advir e o golpe da devolução no embate com a morte que lá está e que o leva a pensar e à autoconscientização.


O homem pode então introduzir esse conhecimento existencial no projeto de sua vida, e assim se apropriar da existência fazendo-a efetivamente sua, tornando-se autêntico, não mais um ente sem raízes entre outros.


Essa visão existencial do homem, em que ele se conscientiza das estruturas existenciais a que está condicionado e que o tira da superficialidade em que desenvolve seus conflitos tornou-se sedutora para a psiquiatria, surgindo Psiquiatras conhecidos por se alimentarem de seus estudos - como Binswanger, Medard Boss, Rollo May, Ronald Laing entre outros.

Zigue-Zagueando... (T.Villano)



Não quero nada... sou todo ausência! Esvaziei-me de fé, de desejos e tentações...
Sou de um amor encantado, que engolido por um sapo espera o princípe morrer para tocar fogo em todo seu reinado. Vim de muito tempo atrás. Eu vi o nascimento das estrelas e vi o mar ficar prenhe nas espumas brancas de suas ondas... Nasci do zigue-zague das certezas. Fui gerado da loucura dos gênios, onde a lucidez estuprou a razão - no manicômio clandestino dos que nunca foram, nem serão.


Aqui sem a loucura não é possível sobreviver. Eu vejo pessoas que enganado a lucidez, tornaram-se animais de carga, carregando fardos, regras e entulhos por pura imposição - e sem questionar caminham de cabeças baixas. Vejo pessoas abandonadas ao vício das paixões, dos entorpecentes, da bebida e da comida na tentativa em vão, de tapar o apito do assombro que a angústia dá e também recolhe. Alguns já nem conseguem dormir, outros não suportam o silêncio. Não conseguem receber o abraço do ócio e então, o trabalho, as viagens e as compras se tornam compulsão - avidez por novidades.


Não veêm nos filhos a chegada (alethéia) e ainda querem lhes impor suas regras sobre a vida, deixando de acolher um novo modo de ser. Encontram explicações e teorias que forçam a capacidade de abertura. Teoria e explicação: são coisas que não são, mas a gente finge ser para saber como seria. Alguns, respodem positivamente. Outros, ainda dizem: "Vejam eles (os outros), eles estão sempre bem! E eu? Não consigo me enquadar, o problema deve ser eu! Eu tenho isso, eu devo aquilo, o que vou ser na vida?" Caem então, na sedução do mundo instituído e enlouquecem sem a raíz, que acolhida pela terra brotará para os céus - o mistério incompreensível do Infinito.
A
A
Mas, aqueles que sabem, sabem do que? Sabem de que não se trata de absolutamente Nada, comunicam-se com a floresta, os bichos e a longa noite. Lá, tornam-se forasteiros iluminados, acolhem o sentido das coisas, o desabrochar da verdade em suas brincadeiras de velar e des-velar. Na inospitabilidade, fundem-se e aceitam a sua vocação, o chamado para longe. Eles assim, se tornam verdadeiramente humanos e compreendem mais tarde, o homem-máquina vestido de seus vários títulos - que ainda pela razão, busca desesperado a Grande Expicação. Mas, a inteligência matemática incapaz de compreender suas lacunas, constrói para si estatísticas, eliminando aqueles cujo o estudo não lhes interessa.
A
A
O soco na boca do estômago e a insegurança da ausência de amparo, traz para si a certeza enganosa das idéias absolutas - explicadas pela encobertura da intencionalidade. O que só se pode na experiência, esvaziados de conhecimento, descobrir pela levitação das idéias - o grande Sagrado da Existência - A VIDA. Pura doação e ao acaso gratuita. O milagre na ponta do nariz. A angústia que brota do sorvedouro da existência, que do aperto no peito nos diz: Eis-me aqui!