piparotes

Posso respeitar a tenacidade corajosa de quem se mantém fiel a suas convicções, mas no que ela difere da teima de quem se esconde atrás dessa fidelidade porque não sabe negociar com quem pensa diferente e com o emaranhado das circunstâncias que mudam? Aplicar princípios e nunca se afastar deles é uma prova de coragem? Ou é a covardice de quem evita se sujar com as nuances da vida concreta?

Olhando para trás, descubro (com certo orgulho) que, ao longo da vida, fiz inúmeras concessões, inclusive na hora de escolhas fundamentais. Poucas vezes lamentei não ter sido coerente. Mas muitas vezes lamento não ter sabido fazer as concessões necessárias, por exemplo, na hora de ajustar meu desejo ao desejo de pessoas que amava e de quem, portanto, tive que me afastar.

A coerência é uma virtude só para quem se orienta por princípios. Para o indivíduo moral, que se orienta (e desorienta) por dilemas, a coerência não é uma virtude, ao contrário, é uma fuga (um tanto covarde) da complexidade concreta. Oscar Wilde, que é um grande fustigador de nossas falsas certezas morais, disse que "a coerência é o último refúgio de quem tem pouca fantasia" e, eu acrescentaria, de quem tem pouca coragem.

(C. Calligaris)

Eterno Retorno

Tudo vai, tudo volta; eternamente gira a roda do ser.
Tudo morre, tudo refloresce, eternamente transcorre o ano do ser.
Tudo se desfaz, tudo é refeito; e
ternamente fiel a si mesmo permanece o anel,
Eternamente constróí-se a mesma casa do ser.
Tudo se separa, tudo volta a se encontrar; do ser.
Em cada instante começa o ser; em torno de todo o "aqui " rola a bola "acolá ".
O meio está em toda parte. Curvo é o caminho da eternidade.


(NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, "0 convalescente", § 2).


O conceito do Eterno Retorno nos remte a um questionamento sobre a vida: na existência escancarada de cada ser, amamos ou não amamos a vida? Se tudo torna e retorna - o gozo, a dor, a angústia, criação, destruição, alegria e tristeza, saúde, doença, bem e mal, belo e feio… tudo vai e tudo retorna... Se tudo isso volta sem nenhuma ordem ou ciclo — isto é divino ou maldito? Amamos a vida a tal ponto de desejarmos ela, infinitas vezes sem fim? Vivendo todos os nossos ocasos, bandições e decepções com a mesma intensidade? Seríamos capazes de amar a vida que temos - a única vida que temos - a ponto de querermos vivê-la sem a menor alteração, infinitas vezes ao longo da eternidade? Temos tal amor ao nosso caminho?

Todas as coisas que parecem ser antagônicas. Ou seja, todos os opostos na realidade não se opõem, mas são faces de uma mesma realidade. Um complementa o outro, são continuidades de apenas um jogo. Alegria e tristeza são faces de uma única coisa experienciada em diferentes graus. O retorno de tudo não se reporta a uma demarcação temporal cíclica e exata, mas às nuances de vivências que se complementam e dão o colorido da vida.

O devir não ocorre exatamente igual, são variações de sentidos já vivenciados. O que ja senti de bom e de mal, não serão iguais amanhã, mas voltarei a experimentar esses estados em diferentes variações...

Então, se tudo retorna - será que queremos mesmo viver à eternidade onde nada de novo irá acontecer além de vivências com nuances variadas de uma mesma realidade?
Só você pode responder a essa pergunta, ninguém pode fazer isso por você. Lembre-se: uma resposta lógica, pronta e acabada não faz sentido. Há de remoer e buscar nas entranhas da angústia e nas portas do desespero reflexões fecundas, prenhes de insights...

Temos tal amor ao nosso caminho? Aos destinos que trilhamos? Sou Autor de minha vida? Escrevo ela com minha carne e meu sangue? Ou outras pessoas escrevem p/ mim, tornando-me mero ator ou coadjuvante? Sigo meu caminho ou ando por trilhas já trilhadas?

É hora de criarmos novos valores, e irmos p/ uma reformulação total de ideais...

O castigo físico


O castigo físico

O castigo físico acaba com a autoridade de quem castiga, pois revela que seu argumento é a força

UMA RECENTE pesquisa Datafolha (Folha, 26/7) mostra que, no Brasil, 69% das mães e 44% dos pais admitem ter batido nos filhos.

Parêntese. Os pais são tão violentos quanto as mães: simplesmente, eles passam menos tempo em casa e lidam menos com o "adestramento" dos filhos.

A pesquisa constata também que 72% dos adultos sofreram castigos físicos quando crianças. Como se explica, então, o fato de que 54% dos brasileiros se declaram contrários ao projeto de lei que proíbe os castigos físicos em crianças? Há várias hipóteses possíveis.

1) Talvez quem apanhou quando criança não queira perder o direito de se vingar em cima dos filhos.

2) Talvez não aceitemos a ideia de que os nossos pais tinham sobre nós uma autoridade maior do que a que nós temos ou teremos sobre nossos filhos.

3) Na mesma linha, talvez estejamos dispostos a apanhar dos superiores sob a condição de sermos autorizados a bater nos subalternos.


Nota: aceitar apanhar dos mais poderosos para poder bater nos mais fracos é a caraterística que resume a personalidade burocrático-autoritária do funcionário fascista.

4) A autoridade, dizem alguns com razão, sempre tem um pé na coação e recorre à força quando seu prestígio não for suficiente para ela se impor. Hoje, a autoridade simbólica dos adultos é cada vez menor. É provável que os próprios adultos sejam responsáveis por isso (principalmente, por eles se comportarem cada vez mais como crianças); tanto faz, o que importa é que o prestígio dos adultos não lhes garante mais respeito e obediência. Portanto, a palavra aos tabefes.

É um erro: o castigo físico acaba com a autoridade de quem castiga, pois revela que seu argumento é apenas a força. A reação mais sensata da criança será: tente de novo quando eu estiver com 15 anos e 1,80 m de altura.

Esses e outros argumentos a favor da palmatória não encontram minha simpatia. Até porque verifico que os rastos desses castigos não são bonitos. Mesmo um simples tapa é facilmente traumático tanto para o pai que bateu como para o filho: ele paira na memória de ambos como uma traição amorosa que não pode ser falada por ser demasiado humilhante (para os dois). Há pais violentos que passam a vida na culpa, e há crianças cuja vida erótica adulta será organizada pela tentativa de encontrar algum sinal de amor no sadismo dos pais.

Apesar disso, se tivesse sido consultado na pesquisa, provavelmente eu teria me declarado contra a nova lei, por duas razões.

A primeira (e menos relevante) é que existem violências contra crianças piores do que a violência física, e receio que uma lei reprimindo o castigo físico nos leve a pensar que, por assim dizer, "o que não bate engorda". Infelizmente, não é preciso bater para trucidar uma criança.

A segunda razão (e mais relevante) é que a nova lei não surge num contexto em que os pais teriam poder absoluto sobre o corpo dos filhos. Mesmo sem a nova lei, o professor que visse sinais de violência no corpo de um dos alunos avisaria à polícia e à autoridade judiciária. O mesmo valeria para o pediatra ou para o psicoterapeuta. Inversamente, um pai cujo filho fosse batido na escola processaria o professor e a instituição. Também, com um pouco de sorte, uma criança batida pode denunciar o adulto que a abusa.

Pergunta: para que servem leis que pouco mudam o quadro legal e só explicitam e particularizam proibições que já vigem de modo geral? Essas leis me parecem ter sobretudo a intenção de afirmar, demonstrar e estender o poder do Estado na vida dos cidadãos.

Uma coisa aprendi com Michel Foucault: o poder moderno é raramente extravagante em suas exigências. Como ele não tem conteúdo específico, mas gosta apenas de se expandir, ele escolhe o caminho mais fácil, conquistando a adesão "espontânea" de seus sujeitos. Como? Simples: operando "obviamente" "pelo bem dos cidadãos" no caso, pelo bem das crianças.

Resumindo:

1) sou absolutamente contra qualquer castigo físico; 2) sou também contra a extensão do poder do Estado no campo da vida privada, por temperamento anárquico e porque sou convencido que, neste campo, as famílias erram muito, mas o Estado, quase sempre, erra mais.

Preconceitos...


... É banal que, ao descrever uma reunião, digamos: "Havia cinco pessoas". No entanto, havia seis: a gente não se contou entre os presentes. Esse deslize exemplifica o oitavo pecado capital: tirar o corpo fora, ou seja, falar dos outros e do mundo como se nossa subjetividade não atrapalhasse nem o mundo nem nossa fala. O preconceito é filho desse pecado: se me esqueço de mim e de minha história na hora de falar dos outros, é provável que eu acabe lhes atribuindo exatamente aquela parte de mim ou de minha história que quis suprimir...

C. Calligaris

(...)

"A união faz a força". Mas faz a força a que preço? Uma história recente dizia que a massa era poderosa e irresistível, mas irremediavelmente burra e cruel. Meus pais tinham conhecido os 20 anos do fascismo italiano e assistiam ao desastre do socialismo real, manifesto (para quem quisesse ler e ouvir) desde os anos 50. Não seria no Brasil de hoje que eles seriam desmentidos: partidos e movimentos, sobretudo quando têm uma forte coesão, parecem ser sempre piores do que as pessoas que os compõem.

Mais tarde, consagrei minha tese de doutorado a esta pergunta: como é possível que homens quaisquer, como você e eu, sejam levados a funcionar como o braço armado de genocídios e extermínios que repugnariam a suas consciências se eles agissem sozinhos? Cheguei a uma conclusão que tento resumir: não é por medo de punições nem por convicção ideológica. É porque, para o sujeito moderno, tanto a dúvida sobre quem ele é quanto a incerteza sobre o que ele quer da vida são fardos imensos. Ele pode ser levado, portanto, a sacrificar sua individualidade à condição de que o grupo lhe ofereça a ilusória impressão de "saber" quem ele é e quais são suas tarefas. Um homem qualquer pode colocar fogo numa sinagoga repleta ou despedaçar nenês contra uma parede para ganhar o "conforto" de sentir-se parte eficiente de um grupo.

A desconfiança dos grupos não se desmentiu quando me ocupei um pouco da função da turma e da gangue (sobretudo adolescente) na violência criminosa. Por caminhos psicológicos um pouco diferentes, aqui também o grupo potencializa o que há de pior em alguns de nós. Sentir-se reconhecido pelos "compadres" é uma razão suficiente para esquecer-se de inibições e freios morais básicos. Os quatro rapazes que, em 1997, em Brasília, queimaram vivo o índio Galdino, tomados um a um, nunca teriam perpetrado aquele horror.

Aparte: a sedução do grupo não constitui um atenuante. Ao contrário, a covardia que leva alguém a trocar sua humanidade pelo conforto coletivo é, a meu ver, uma agravante.

Dos grupos só se salvaria, em princípio, a família: já em 1812, o alemão J.D. Wyss publicara "Os Robinsons Suíços", em que transformava a gloriosa solidão de Robinson Crusoé no ideal da vida familiar numa ilha deserta. A idéia alimentou um seriado televisivo americano nos anos 60. Na mesma linha e época, a família de "Perdidos no Espaço" chamava-se Robinson. Mas, desde os anos 70, a antipsiquiatria inglesa (Laing, Cooper, Esterson) mostrava que a família era a fonte originária do sofrimento neurótico e da loucura.

Em suma, durante os dois últimos séculos, inventamos utopias coletivas, mas elas devoram nossa liberdade; sonhamos com o calor do lar, mas ele parece ser responsável por muitos de nossos males. Atrás da "união que faz a força", paira o medo (justificado) de que, nessa união, nossa singularidade perca o melhor de si. E, atrás do sonho de Robinson, paira o pavor (também justificado) de uma solidão sem conforto.

Para lidar com esse paradoxo, quando sou chamado a "ajudar" grupos em dificuldade (famílias e casais), adoto um pequeno artifício: em vez de explorar as falhas (ou seja, em vez de perguntar o que cada um estima estar perdendo por causa da relação), tomo, às vezes, o caminho oposto e pergunto o que cada um estima estar ganhando na convivência com o outro.

É pouco, mas é um jeito de as pessoas se lembrarem de que, apesar de todos os pesares, vale a pena pagar um preço para elas não viverem sozinhas. Claro, depende do preço.

5 coisas


Quero apenas cinco coisas..
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser... sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando (Pablo naruda)

Sê (Pablo Neruda)



Se não puderes ser um pinheiro, no topo de uma colina,
Sê um arbusto no vale mas sê
O melhor arbusto à margem do regato.
Sê um ramo, se não puderes ser uma árvore.
Se não puderes ser um ramo, sê um pouco de relva
E dá alegria a algum caminho.

Se não puderes ser uma estrada,
Sê apenas uma senda,
Se não puderes ser o Sol, sê uma estrela.
Não é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso...
Mas sê o melhor no que quer que sejas.

O Direito de Buscar a Felicidade (C.Calligaris)



Não posso exigir que, para eu ser feliz, todos procurem a mesma felicidade que eu busco


O ARTIGO SEXTO da Constituição Federal declara que "são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados".

O Movimento Mais Feliz (www.maisfeliz.org) promove uma emenda constitucional pela qual o artigo seria modificado da seguinte forma: "São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde etc." (segue inalterado até o fim).

É claro que, se eu dispuser de casa, emprego, assistência médica, segurança, terei mais tempo e energia para buscar minha felicidade. No entanto o respeito a esses direitos sociais básicos não garante a felicidade de ninguém; como se diz, ter comida e roupa lavada é bom e ajuda, mas não é condição suficiente nem absolutamente necessária para a busca da felicidade.

Em suma, implico um pouco com o adjetivo "essencial" no texto da emenda, mas, fora isso, gosto da iniciativa porque, como a Declaração de Independência dos EUA, ela situa a busca da felicidade como um direito do indivíduo, anterior a todos os direitos sociais.

Por que a busca da felicidade não seria apenas mais um direito social na lista? Simples.

A felicidade, para você, pode ser uma vida casta; para outro, pode ser um casamento monogâmico; para outro ainda, pode ser uma orgia promíscua.

Para você, buscar a felicidade consiste em exercer uma rigorosa disciplina do corpo; para outros, é comilança e ociosidade. Alguns procuram o agito da vida urbana, e outros, o silêncio do deserto. Há os que querem simplicidade e os que preferem o luxo. Buscar a felicidade, para alguns, significa servir a grandes ideais ou a um deus; para outros, permitir-se os prazeres mais efêmeros.

Invento e procuro minha versão da felicidade, com apenas um limite: minha busca não pode impedir os outros de procurar a felicidade que eles bem entendem. Por isso, obviamente, por mais que eu pense que isto me faria muito feliz, não posso dirigir bêbado, assaltar bancos ou escutar música alta depois da meia-noite. Por isso também não posso exigir que, para eu ser feliz, todos busquem a mesma felicidade que eu busco.

Por exemplo, você procura ser feliz num casamento indissolúvel diante de Deus e dos homens. A sociedade deve permitir que você se case, na sua igreja, e nunca se divorcie. Mas, se, para ser feliz, você exigir que todos os casamentos sejam indissolúveis, você não será fundamentalmente diferente de quem, para ser feliz, quer estuprar, assaltar ou dirigir bêbado.

Não ficou claro? Pois bem, imagine que, para ser feliz, você ache necessário que todos queiram ser felizes do jeito que você gosta; inevitavelmente, você desprezará a busca da felicidade de seus concidadãos exatamente como o bandido ou o estuprador a desprezam.

Em matéria de felicidade, os governos podem oferecer as melhores condições possíveis para que cada indivíduo persiga seu projeto -por exemplo, como sugere a emenda constitucional proposta, garantindo a todos os direitos sociais básicos. Mas o melhor governo é o que não prefere nenhuma das diferentes felicidades que seus sujeitos procuram.

Não é coisa simples. Nosso governo oferece uma isenção fiscal às igrejas, as quais, certamente, são cruciais na procura da felicidade de muitos. Mas as escolas de dança de salão ou os clubes sadomasoquistas também são significativos na busca da felicidade de vários cidadãos. Será que um governo deve favorecer a ideia de felicidade compartilhada pela maioria? Ou, então, será que deve apoiar a felicidade que teria uma mais "nobre" inspiração moral?

Antes de responder, considere: os governos totalitários (laicos ou religiosos) sempre "sabem" qual é a felicidade "certa" para seus sujeitos. Juram que eles querem o bem dos cidadãos e garantem a felicidade como um direito social -claro, é a mesma felicidade para todos. É isso que você quer?

Enfim, introduzir na Constituição Federal a busca da felicidade como direito do indivíduo, aquém e acima de todos os direitos sociais, é um gesto de liberdade, quase um ato de resistência...

Recortes (C. Calligaris)

(...)

Todos queremos que filhos ou alunos respeitem nossa autoridade. Agora, todos também consideramos que nossa tarefa de pais ou educadores só será cumprida quando filhos e alunos pensarem por conta própria, ou seja, quando eles sejam capazes de desconsiderar nossos conselhos e desobedecer a nossas ordens.

Seria cômodo se, como nas sociedades tradicionais, a gente dispusesse de ritos de passagem sancionando a entrada na idade adulta: aos 15 anos e um dia, saia sozinho pela savana, armado de uma lança, e só volte tendo matado seu primeiro leão. A partir de então, você será autônomo.

Infelizmente, para nós, o tempo de se tornar adulto se estende sem limites definidos: não sabemos quando ele acaba e, mais problemático ainda, não sabemos quando começa. Consequência: pais e educadores podem sofrer, exasperados pela rebeldia de moleques e meninas incontroláveis e, ao mesmo tempo, deliciar-se ao relatar as travessuras de filhos e alunos. Qualquer terapeuta já atendeu pais "desesperados" com a insubordinação dos filhos, mas que, de repente, abrem um sorriso extasiado na hora de contar "o horror" que é sua vida com esses descendentes que os desrespeitam.

Eis o problema que torna educar quase impossível, em nossa cultura: a autonomia, para nós, é um valor tão importante que ela precisa ser confirmada pela desobediência. Com isso, qualquer pai prefere, no fundo, lidar com um filho revoltado a imaginar que o filho possa ter uma vida servil e, portanto, medíocre.

No próprio imaginário cristão, aliás, uma conversão tem mais valor do que a fé de quem sempre acreditou. A parábola do pastor que deixa o rebanho para procurar a ovelha perdida sugere que, assim como a gente, talvez Deus prefira os rebeldes. rs

Uma anedota. Em maio de 1969, no átrio da Universidade de Genebra, junto com amigos anarquistas, eu distribuía panfletos criticando a iminente visita do papa à cidade.

Um professor, passando por nós, perguntou-me: "Será que o senhor tem uma autorização para distribuir esses panfletos?". Respondi imediatamente: "Senhor, tenho muito mais do que uma autorização, tenho uma proibição formal".

Fato coerente com o que acabo de argumentar, ele achou engraçada minha impertinência e deixou que continuássemos.

Brincadeira à parte, na nossa cultura, a condição básica de uma educação que não seja demasiado danosa é: os pais não devem querer que os filhos sejam seus clones.

Quando desejamos que nossos filhos sejam a cópia da gente, é para encarregá-los de compensar nossas frustrações: quero um filho igual a mim para que tenha o sucesso que eu não tive ou para que viva segundo regras que eu proclamo, mas nunca consegui observar. Pois bem, para criar e educar no interesse dos menores, é necessário fazer o luto dessas esperanças, que tornam as crianças escravas de nossos devaneios narcisistas. Em compensação, quem gosta mesmo de filho-clone são todos os fundamentalistas. É quase uma definição, aliás: fundamentalista é quem quer filhos tão fundamentalistas quanto ele.

Ser


Vejo o mundo pelo avesso. Pessoas correm em monotonia, perdidos em mesquinharias do dia a dia. O amor é fast food? Todos querem apenas agarrar a fugacidade dos prazeres? Beber goles rápidos e se embriagar de vaidade... Preciso ficar sozinho, dizem ... Mas como ficar só se sozinho todos nós já somos? O amor é emprestar ao outro o que se mais tem de valioso - a solidão! Mas hoje não se ama incondicionalmente, parece que tudo tem condições para acontecer. Se você não não acena junto as minhas expectativas - eu troco e arrumo outro, viro do avesso e transformo o outro em tudo, menos no que ele é. E continuam a se enganar, seduzindo, flertando com o próprio ego e se auto afirmando - eu quero, eu posso! E quando julgam os outros é porque não conseguem reconhecer em si os mesmos pecados. Não existem mais homens... tudo é regido por leis automáticas - automação das máquinas. O que está em extinção é "ser humano"...?

"Meu amor minha disponibilidade é eterna com você enquanto estou com você. Eu também tenho outras urgências como ser humano e estas urgências têm a sua importância, o que não substitui aquelas que vivo com você. Eu te amo! E me encanto com seu jeito de ser. E meu amor é de graça... É uma doação maravilhosa e divina. E a nossa relação é sustentada por esse tipo de presença um para o outro. A natureza de nossa presença é uma relação que nós iremos responder como der, puder, quiser. O tempo expressa nossa própria existência: existe meu amor por você, como também este amor não é a única dimensão com a qual eu sou na vida. Tenho necessidades mas faço tudo de graça, porque me enconto com suas mãos, com seu jeito de andar, falar e se comportar. Meu compromisso com você é eterno enquanto posso estar com você... um dia teremos inevitavelmente de nos separar, pois nada é para sempre. Minha carne um dia se desintegrará... mas que nosso sentimento possa se transformar em um brilho nos céus... uma estrela cadente que nunca apaga sua luz"...

Neurose X Liberdade


A propósito, quando uma pessoa discute como se sua própria vida dependesse da discussão, podemos estar certos de que por trás de sua paixão existe mais do que um simples interesse objetivo pela verdade. Ele provavelmente estará tentando poupar seu próprio esquema neurótico de algum distúrbio.


Neurose significa uma capitulação (rendição) diante da liberdade, a submissão do si-mesmo a fórmulas rígidas de treinamento. Como consequencia, a pesonalidade nesse ponto torna-se uma máquina.

Sáude Mental



Quanto mais saudável mentalmente a pessoa se tornar, tanto mais ela será capaz de moldar criativamente os materiais da vida e. por conseguinte, mais senhora será de seu potencial de liberdade. Por isso, quando a psicoterapia ajuda a superar seu problema de personalidade, na verdade ajuda-o a tornar-se mais livre.

O neurótico, que a té certo ponto todos nós representamos, sofre pelo fato de não poder aceitar a si mesmo, de não poder suportar-se, fazendo então uma outra imagem de si mesmo. Afinal, a pessoa só pode contar com ela mesma para viver e enfrentar o mundo. Por mais que a pessoa deseje, se ela não puder ser ela mesma, nunca conseguirá assumir um outra si-mesmo.

(Rollo May)

Obesidade - Reflexões Psicológicas e Existenciais (T.V)


Obesidade - Reflexões Psicológicas e Existenciais

Nossa intenção será a de levantar reflexões sobre as motivações psicológicas e existencias que podem ajudar e facilitar o ganho de peso excessivo entre as pessoas. É fato que existem pessoas que não são obesas mas sim, que por sua constituição genética, jamais alcançaram o padrão corporal estético que nossa cultura ocidental estipula como referência. Por isso, trataremos aqui da questão compulsõria de ganho de peso e apetite descomedido.

Não queremos aqui, elaborar relação alguma com o estabelecimento de um "perfil de personalidade" ou "um padrão psicológico" entre os obesos - facilmente cairíamos no erro que nossa própria civilização criou ao estipular estereótipos e modelos padrão. Todavia, ao considerarmos o indivíduo obeso que nos procura para solucionar seu sofrimento, não podemos deixar de observar, tanto nas entrevistas de candidatos a cirurgia bariátrica, como em indivíduos ditos comedores compulsivos, semelhanças em questões emocionais ligadas ao seu sofrimento.

Podemos nos perguntar então: - "Esse corpo que preenchido por alimentos e que cresce exageradamente (por exemplo em alguns casos de cirurgia bariátrica) não haveria aí, um vazio de outra ordem, que não apenas o do estômago?" E se realmente esse vazio não é deste órgão, caberia outra questão: - "Haveriam implicações psicológicas e/ou emocionais em reduzí-lo, nos casos de cirugia?"

É muito comum também, perceber que quando a obesidade já está diagnosticada e estabelecida, o paciente começa então, a viver em função das dificuldades que o excesso de peso lhe traz, por exemplo: adinamia, dificuldades em exercitar o ato sexual, limitações em se expor em atividades sociais, sensação de vergonha, inferioridade, dificuldades de controle, sono, etc (Kathalian, 1992). Então naturalmente, todos os seus problemas poderão se esconder atrás de apenas um, o controle de peso. Ou seja, toda a sua angústia, ansiedade, dificuldades emocionais ou outros problemas passam a ficar camulflados na somatização. Afinal para muitos, comer tranquiliza e alivia a ansiedade. Isso se percebe com mais facilidade em indivíduos que comem exageradamente de noite. De noite é o período de maior contato interior, onde nos recostamos em nós mesmos, onde cessam as atividades cotidianas e já não há mais com o que nos ocupar (distrair) - ou seja nossa consciência passa a se ocupar com nós mesmos.

Logo, poderíamos refletir que talvez, os indivíduos obesos se utilizam de um recurso, ou seja, localizam todas as suas angústias no peso. Explico: ele não precisará mais pensar em suas dificuldades psíquicas, emocionais ou de outra ordem, mas apenas em controlar o peso, o que tornará a única causa de sua infelicidade. É é mais fácil atribuir sentimentos de frustração, raiva e inutilidade para a pessoa que foge do padrão estabelecido pela mídia, do que aceitar as verdadeiras origens de seus problemas.

Outros estudos indicam que por trás do excesso de peso se encontra uma pessoa muito insegura e com pouca auto-estima. Uma pessoa que poderá ter sempre por modelos seres humanos que beiram o impossível: astros de cinema, famosos, modelos, etc. O que a fará se frustrar ainda mais, pois seus valores, além de poderem ser apenas exteriores e estéticos, poderão estar sempre sendo guiados pelos outros.

Heidegger (1995) em sua obra "Ser e Tempo" diz que a medida que o ser humano apresenta-se como estar-lançado no mundo (não escolhemos, onde, quando, que corpo ou que família vamos ter) o ser e nosso estar aí é movido pela angústia de sermos próprios, únicos. Cada escolha é responsabilidade só nossa. Isso implica em lidarmos com quatro aspectos inerentes a vida: angústia, culpa, solidão e finitude. No caso de algumas característcias do obeso, ele geralmente busca fugir de sua responsabilidade e solidão buscando amparo e segurança nos outros, grupos, instituições etc. (Dependência em todos os aspectos, não apenas a comida). Pergunta: de onde proveria essa carência? Esse sentimento de abandono?

Eric Fromm, (1985) comenta que assim o afeto pode ser bloqueado pela agressividade contra si mesmo e contra os outros, provocando grandes cargas de sentimentos de culpa e a incapacidade de amar, acentuando apenas o desejo de posse.

Também a literatura nos mostra que o obeso pode ser alguém que não possue um grau de auto-conhecimento maduro. Ou seja, eles acabam não possuindo a percepção discriminada de suas necessidades básicas: fome, sede, sono, frio, trsiteza, ansiedade, dor, etc. Todos esses recebem como alívio a comida. A voracidade traz a baila um núcleo de insatisfação e dificuldades em experimentar limites. O corpo se torna um inimigo, ele acaba sendo o depósito de tudo o que há de mau e sombrio. Existe sim um excessivo controle no plano racional (onde há medo e muita insegurança) mas, ao comer compulsivamente esse controle sai de cena, a cabeça assim tem condições de relaxar e ele só volta a si quando a "orgia alimentar" tem por fim um desconforto gástrico que evoca a consciência do ato de comer, onde geralmente vem culpa e arrependimento.

É interessante notarmos que corpo é matéria. Etimológicamente, matéria tem por origem a palavra Máter, que significa mãe. A boca é nosso primeiro veículo das noções de eu e não-eu. Ingerir, digerir e eliminar fazem parte do trageto alimentar, bem como as noçoes de cheio e vazio. A máe é nosso primeiro alimento, ela rege nosso período pré-verbal em que a linguagem do corpo estabelece as relações. De algum modo, poderíamos dizer que talvez os obesos estariam amarrados num período de desenvolvimento infantilizado, que os faz permanecer infantis na alma (puros) mesmo que em corpos exageradamente crescidos. O corpo seria depois de adultos uma camada protetora de Máter, contra as ameaças da vida.

Apenas como curiosidade, dos transtornos psiquiátricos descritos pelo DSM IV, a maior frequencia é a do TCP (transtorno de compulsão periódica, cuja a descrição traz os seguintes critérios que foram previamente selecionados:

1) Ataques de hiperfagia num período de tempo limitado sem comportamentos compensatórios (exercícios físicos exagerados; auto-indução de vômitos; abusos de laxantes e diuréticos).
2) Sentimentos de falta de controle sobre o comportamento alimentar.
3) Presença de 3 ou mais dos seguintes critérios: comer rapidamente, comer até sentir-se incomodamente repleto, comer grandes quantidades de alimento sem fome, comer sozinho, sentir repulsa por si mesmo, depressão, culpa e angústia em relação à compulsão.
4) Apresentar dois episódios compulsivos semanais por um período mínimo de 6 meses.
5) Em casos em que o paciente no pós-cirurgico evolui com sintomas que indicam a preponderância de humor deprimido e irritabilidade, são usados recursos medicamentosos até que haja uma adaptação à nova realidade.

A importância de um profissional da saúde, no caso o Psicólogo, junto com endócrinos, nutricionistas e mesmo a família se torna imprescindível. Um processo que busque os envolver com suas próprias insatisfações. Os obesos como já foi dito, geralmente possuem valores fantasisos e não raro se utilizam do mundo dos sonhos como recurso à realidade. Há sempre a tendência de permanecerem passivos, na esperança de conseguirem tudo (incluso a perda de peso) sem ônus algum.

Outro aspecto são os estudos ligados à sexualidade e o prazer que mostram um paralelo com a obesidade. A comida já é por si um prazer, entretanto ela pode se converter numa substituição do prazer sexual, processo esse que se inicia na infância. quando se misturam as sensações de fome, apetite, saciação, conforto e prazer (Belmonte, 1986).

Específicamente relacionado ao prazer sexual, a literatura nos indica algumas reflexões sobre a ingestão excessiva de alimentos (Stuart & Jacobson, 1990):

1) Pode ter a ver com uma resposta contra as insatisfações sexuais;
2) Pode ser uma forma de esconder os desejos sexuais;
3) Pode servir de escudo para escapar do sexo.

Embora a comida seja considerada como uma fonte de prazer, Cassius (1990) explica que quem come demais perdeu a capacidade de sentir prazer. Isto ocorre porque cada vez mais se come rápido e em grandes quantidades. Assim, o indivíduo sente-se culpado, desespera-se por perder o controle e forma-se um circulo vicioso. Come-se mais rápido para não se sentir culpado. Logo, a crítica que o obeso recebe (dos outros de de si) por comer demais, pode acabar interferindo na permissão interna de sentir prazer.

Lowen (1979) interpreta a necessidade de comer em excesso dizendo que nem todo mundo sexualmente frustrado come exageradamente, porém para ele o inverso é verdadeiro, toda a pessoa que come em excesso e em demasia não se encontra sexualmente satisfeita.

Bom, não podemos tomar por verdade qualquer idéia exposta aqui. Cada ser humano possue a sua própria verdade e a tarefa de um Psicólogo é facilitar esse acesso. Ajudar, o indivíduo a tornar-se independente, dono de seus desejos, dono de sua vida. Resgatar sua história e reconstruir os cacos de sofrimento que puderam estar perdidos ou que foram negligenciados durante sua vida. Tudo o que fizemos foi levantar reflexões sobre um mal que também é social, o que merece mais estudos. Afinal, nos deparamos no consultório com pessoas que não são compulsivas, nem obesas mas, que por terem genéticamente um corpo diferente dos padrões da mídia buscam o impossível. Ao invés de se aceitarem, são algozes de si mesmas. Mas, esse é um outro tema a se abordar.

O que queremos é gerar indagações e questionamentos que ajudem a nos aproximar de nossa natureza. Mesmo assim, uma conclusão seria: O emagrecimento implica numa reflexão sobre o sofrimento que o obeso passa, não só nas questões emocionais mas em sua própria reeducação alimentar. Assim, o processo que poderíamos chamar de cura da obesidade não se resume em simplesmente emagrecer, mas em mudar atitudes, significados, visão de mundo, modelos, estereótipos e valores. Trabalho esse que se contrói em conjunto com endócrinos, nutricionistas, fisioterapeutas, psicólogos e a própria familia.

"O senhor esta olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo". (Rilke, 2001, p.26)

"Naquela hora da noite conhecia o grande susto de estar viva, tendo como único amparo o desamparo de estar viva (...) e se amparava no p´roprio desamparo" (Lispector, 1998, p.140)

Bibliografia

CASSIUS, J. Socorro! Estou preso no meu corpo. Um guia para compreender como os conflitos ajudam a engordar. São PAulo: gente, 1990.

FROM, E. Ter e Ser. RJ: paz e terra, 1986.

Lispector, C. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. RJ: Rocco, 1998.

Lowen, A. 1979 in http://www.sppc.med.br/mesas/silvia marina.html

Kathalian, A. Obesidade: um desafio. In: Mello Filho et al. psicossomática Hoje, Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.

Rilke, R. M. Cartas a um jovem poeta. SP: Globo, 2001.

Stuart, R; JAcobson, B. Peso, sexo e casamento. São Paulo: saraiva, 1990

Estação da vida...



A correnteza das águas me levam ao fim dos rios que desembocam ao mar salgado de um oceano sem fim. A lua brilha mesmo a luz do dia. A vida num piscar de olhos traz ao meu coração a paz florescente de uma infância serena. Meus olhos não piscam e permacem abertos diante da existência que flui. A vida juvenil que sem parar levou-me a vida adulta rumo a uma maturidade espiritual de lucidez sem fim. Meus olhos dóem. A clareza as vezes parece insustentável. Logo a minha frente os tempos da velhice caminham em direção ao inverno. As estações apontam para o ciclo da perpétua mudança. Caminho as sombras de passos lentos. Preciso de galhos para me sustentar. Nesse sonho, existe comigo crianças e ao meu lado a silueta de uma companheira que me ajuda a suportar os dias frios e os prelúdios do fim. Solidão companheira de cabelos grisalhos...

Pássaros cantam acalmando as dores de ossos cançados, conhecedores de gritos, gemidos e guerras... E ao piscar de olhos que até então estavam arregalados, uma libélula desperta-me do sonho levando-me ao instante presente... E vejo a realidade convocar-me de volta ao lugar ao qual pertenço, o lugar-nenhum de uma transição onde o estar-lançado é a única condição perene. Das pessoas que amei, algumas se foram, outras ficaram esquecidas. O que me resta é a promessa de possibilidades constantes onde a angústia assombra as possibilidades em constante abertura. Refresco-me, respiro e logo após o sino soar... volto a nadar nas águas da correnteza de um milagre recheado e prenhe de enigmas, dores e alegrias...

E no fim...


(...) "Nossa morte nos parece acabar com tudo o que importa. Somos, portanto, especialmente sensíveis ao fim do dia, cujo espetáculo acarreta consigo a lembrança dolorosa do fim de nossa jornada, que se aproxima". (C. Calligaris)

A psicopatologia reconhece, aliás, a existência, em alguns indivíduos, de variações sazonais do humor: depressão no outono e no começo do inverno e, às vezes, exaltação maníaca na primavera. Pode ser que a alternância das estações, sobretudo onde elas são mais marcadas, longe do Equador e dos trópicos, produza mudanças no metabolismo. Mas pode ser, simplesmente, que a alternância das estações lembre o ciclo de nossa vida, e o outono seja o equivalente anual do fim da tarde de cada dia...

Na "Divina Commedia", Dante descreve assim o fim da tarde: "Já era a hora em que o desejo volta aos navegantes, e seu coração é enternecido pela lembrança do dia em que disseram adeus a seus doces amigos; é também a hora que fere de amor o novo viajante, se ele ouve de longe um sino que parece chorar o dia que está morrendo."

Reflexões



"Afirmar é enganar-se na porta. Pensar é limitar. Raciocinar é excluir. Há muito que é bom pensar porque há muito que é bom limitar e excluir" (Fernando Pessoa)

"O rigor da ciência matemática é a exatidão... Ao contrário todas as ciências do espírito e até todas as ciências do ser vivo para permanecerem rigorosas, precisam justamente ser inexatas. Pode-se, de fato, apreender também o ser vivo como uma grandeza espácio-temporal do movimento, mas nesse caso não se apreende mais o vivente". (Heidegger)

C.Calligaris


(...) Desconfio de partidos, grupos e aglomerações; mais especificamente, desconfio das falsas concordâncias que surgem entre os membros de partidos ou grupos. Sempre receio que o grupo me tire a coragem de pensar diferente e declarar a divergência. A única coisa que ... me parece provar é que preferimos a tranquilidade de viver concordando com os amigos à tarefa solitária de pensar por nossa conta (...)

Heidegger


A vontade de querer tudo enrigece numa ausência de destino. O correto e o exato dominam o verdadeiro e marginalizam a verdade. A vontade do asseguramento incondiscional faz aparecer a insegurança em todos os níveis (Heidegger)

Os Eremitas Urbanos (Arthur Tufofo)

Os Eremitas Urbanos (Arthur Tufofo)

A etimologia revela a origem das palavras e costuma libertar o sentido daquilo que se quer investigar. Sendo assim, comecemos.


Eremita: do grego eremités; pelo latim eremita –s.m. pessoa que vive no ermo.


Ermo: do grego éremo; pelo latim eremu –s.m. lugar sem habitantes, deserto, descampado, desolado;adj. solitário, desabitado, desertificado (desamparado?).


Ermo: s.m. pop. elmo - 1. armadura antiga para cabeça, espécie de capacete;2. crosta escura que se forma na cabeça das crianças por falta de limpeza.


Possuir uma existência (acontecência) desertificada, e viver em uma "toca" para não ser tocado. Entocar-se parece ser o modo de isolamento preferido para o desolado. Podemos a partir disso começar a perguntar por essa pessoa. Quem é esse que se torna um ermitão? Será que o faz por escolha? De que precisa ele se isolar em seu desolado reduto deserto? O que o ameaça tão visceralmente? Refiro-me a esses inumeráveis casos de pessoas que vivem entocadas em suas ‘residências-colméias’ espalhadas pelas metrópoles do mundo. Desconheço estatísticas brasileiras. No Japão já passam de 1,2 milhões e são chamados de ‘hikikomoris’. Há pouco tempo foram notícia trágica no mundo, pois nove deles se juntaram usando a Internet como ponte de comunicação e promoveram um suicídio coletivo.Os que conheci aqui pelo Brasil, entre amigos, pacientes e outros tantos, de tantos tipos, eram prisioneiros (nem todos) de um modo de existir, emocionalmente falando, em que somente o acuar-se, o retirar-se do mundo dentro do próprio mundo permitia um mínimo de pouso sem nenhum repouso, sem paz de espírito (mas afinal quem a tem de verdade?).


Alguns até que se cuidam muito bem, não estão tão comprometidos, mas simplesmente não acham que vale a pena conviver com todos nos moldes mais corriqueiros do dia a dia.Outros são ‘bernardos-eremitas’. Há no mar um crustáceo de nome curioso: bernardo-eremita é um tipo de lagostim que possui a parte anterior do corpo completamente sem proteção de carapaça. Ele é em carne viva, justo na retaguarda onde está mais vulnerável. Para se proteger, procura conchas que outrora foram moradas de moluscos. Ao encontrá-las, ele se enfia nelas pelas costas, e pronto: carrega consigo a armadura para se proteger de agressores.Todos nós, de alguma forma fazemos isso. Nossa pele, nossas roupas, nossas couraças musculares, nosso intelecto, etc., etc., nossa auto-estima. Usamos tudo isso para nos proteger.


Protegemos principalmente o que é em nós carne viva. Às vezes conseguimos um exoesqueleto tão duro que corremos o risco de calcificar. Podemos endurecer por fora e por dentro e até sofrermos, por exemplo, um enfarto, mas isso é assunto para um outro artigo.


Às vezes podemos usar a proteção de um outro ser, usá-lo como concha- prótese para nos amparar. Outros, como aponta Yves Leloup em seu ‘Deserto Desertos’, retiram-se para forjar no silêncio a própria identidade, à medida que se despojam de si mesmos e enfrentam seus demônios. O deserto é um lugar propício para um intenso encontro consigo mesmo.


Outros, ainda bem mais comprometidos, não têm outra opção que não o recuo para suas fronteiras, que muitas vezes coincidem com a porta de seus quartos. Costumam dormir durante o dia, habitantes das trevas, longe do tumulto. Internet e televisão nas madrugadas são seus contatos com o mundo de fora. Podemos pensar que esse modo de existir possui características peculiares. Ele envolve medo, angústia e ansiedade. Neste sentido, muitas vezes esse modo afinado de estar no mundo tem muitas características da síndrome do pânico, tão comum e epidêmica nos nossos dias.


O medo é de quase tudo e de todos (incluindo de si mesmo). A angústia parece não estar presente. A ansiedade é a verdade do medrar.


Aquilo de que se teme estar diante sempre é, como diz Heidegger, um algo que vem ao encontro dentro do mundo: “...O que se teme possui o caráter de ameaça... Esta sempre adviria de uma determinada região e esta e o que vem dela como temível possui a não familiaridade... O que ameaça nunca se acha no medo, numa proximidade dominável, ele se aproxima” (Heidegger M. -SER E TEMPO Petrópolis,Vozes pg-195). A experiência é de estar impotente em relação à ameaça. Afinado e determinado pelo medo, esse existir se encontra aprisionado por essa armadilha. O medo desvela esse ente-homem no conjunto de seus perigos, no abandono de si mesmo. Responsável completamente por si e sem ainda possuir recursos para lidar com tal grau de ameaças, esse ser humano só encontra possibilidade de sobrevivência dentro do que ainda se preserva como familiar: SUA TOCA! Se nos reportarmos às suas histórias pessoais detectamos que os cuidados paternos de alguma forma foram negados ou insuficientes. O psiquiatra japonês, Dr. Tamaki Saito, refere-se assim à DDAP - Distúrbio de Deficiência da Atenção do Pai - como um motivo comum que traria essas conseqüências para esses eremitas.Mas não nos enganemos: filhos criados sob intensos cuidados também apresentam esses sintomas. Não raro podemos encontrar, na verdade, várias maneiras de um não cuidar. Usar um filho como resposta às próprias necessidades pode ser até mais prejudicial do que abandoná-lo. Muito ajuda quem pouco atrapalha é um ditado bem conhecido por todos. Mas, muitas vezes, para os envolvidos, essa é a única forma de relacionamento possível naquelas circunstâncias específicas. Segundo Winnicott, fazer mal a alguém é não estar lá quando ele precisa de você. Mas, é claro, deve-se ressaltar que esse estar presente deve contemplar a necessidade do ponto de vista daquele que requer sua presença. Isto implica em reconhecimento do outro como outro, uma alteridade.


Cuidar para me encontrar com o outro em sua singularidade. Isso me forçaria, me convocaria para meu próprio ser singular, e aí posso acolher o outro numa ‘solicitude devoluta’ (Heidegger M-SER E TEMPO Petrópolis,Vozes pg-173), que não impõe suas carências nem impõe a mim (o outro) a culpa por não preenchê-las. Costuma-se brincar dizendo-se: “menino, ponha a blusa porque sua mãe está com frio”. Pode parecer a primeira vista um cuidar, um cuidar talvez excessivo, mas de qualquer modo isso sugere como aquele que ainda não dá conta de sua própria existência e que portanto depende de cuidados alheios pode, desde ao se tratar de uma bobagem como usar ou não uma blusa, até questões mais importantes e fundamentais para sua existência, ser impedido de se constituir em sua singularidade, o que pode levá-lo a sucumbir diante das exigências do mundo, por não contar consigo de forma suficientemente confiável para arcar com o que ele entende que terá que constituir como resposta.


Sendo assim, acompanhamos esses que se recolheram, indo até eles lá, onde se encontram e, uma vez autorizados a ali permanecer, suportando esse estar ao lado. Isto pode e é uma excelente proposta de abertura de um espaço para a terapia.Mas isso não será possível. Um contato real não se estabelecerá senão a partir da experiência de si mesmo como eremita. Preciso, antes de mais nada, de um contato íntimo comigo mesmo, (re)conhecer em meu deserto os meus abismos, em minha solidão os meus demônios. Só poderei compreender aquilo que, em minha própria alma, não me for estranho e ainda assim, paradoxalmente, o outro permanecerá completamente outro em sua experiência.


Em outras palavras, é preciso que eu possa me bastar. Mas, o que isto quer dizer? Aí vai mais um recurso etimológico: bastar vem do germânico bastázo que significa sustentar, e do latim vulgar bastare, ser bastante, suficiente, ter suficiência própria. Neste sentido apenas quando me basto, posso então abrir espaço (bastante) para qualquer outro poder ser a partir de mim. Pois me sustento e isto cria um campo de presença que não pressiona, apenas convida de forma mais ou menos isenta. Mais cedo ou mais tarde, se for possível, o outro se tornará independente e voará com as próprias asas escolhendo em liberdade aonde deseja habitar: se junto aos outros ou solitariamente. Neste caso, a diferença agora é que ele estaria escolhendo não ir para o mundo, podendo tomar conta de si. Escolher e realizar seu próprio destino. Algo que antes só podia visitar em suas fantasias.


A idéia, então, é a de que alguém que aprendeu a nadar vá em busca do afogado, mergulhando profundamente no mesmo mar, arriscando-se ao mesmo afogamento e em companhia, apenas em companhia envolvida e comprometida, possa abrir um espaço que se tornará útil para que este outro ouse braçadas salvadoras. Enquanto isso, interferir apenas para garantir que o outro não morra é a única licença à regra: muito ajuda quem pouco atrapalha. Neste ponto gostaria de continuar apenas levantando questões. O que quer dizer escolher ser um eremita para ajudar outros? O que é mesmo fazer uma viagem interior para saber de si mesmo? O que acontece nessa viagem para que milenarmente se afirme que isso seria suficiente para proporcionar sabedoria e transformá-la em ferramenta para abrir tantas portas? Por que todos continuam a afirmar (menos nossa ciência metafísica) que só eu é que posso ter o poder de curar a mim mesmo? Recebo ajuda para não me afogar, mas só eu posso continuar minhas braçadas.Enfim acho que pilhas de perguntas podem continuar sendo colocadas, muitas delas para as quais temos ilusão de possuir as respostas; outras devem continuar resistindo ao imenso mistério que somos.


Um bom homem verdadeiramente interessado em si e nos outros conta com isso.


ARTHUR TUFOLO CRP é Psicoterapeuta clínico desde 1.979. Professor, coordenador e supervisor do Projeto Humanitas. Psicoterapeuta e orientador familiar do Projeto Humanitas. Supervisor, coodernador e orientador da equipe clínica do Instituto Cisne.

Neurose do Tédio (artigo)

Neurose do Tédio (Dr. Solon Spanoudis)

No "dicionário de psicologia", traduzido do "Vocabulário de la Psicologia" de Henri Piéron, de 1951, encontramos, entre outras, as seguintes definições de neurose:

- "Afecção mental que se caracteriza por perturbações funcionais, sem comprometimento da personalidade";

- "A neurose é constituída por sintomas somáticos, negativos e positivos, resultantes da falta de descarga de uma impulsão, sem intervenção dos mecanismos de defesa específicos na formação dos sintomas psiconeuróticos";

-"Neurose narcisista; Regressão que torna a transferência difícil, pois a libido é retirada dos objetos e investida de ego".

Será que definições, como psique, corpo, mente, que decompõem o ser humano num mosaico de noções objetivadas, abstratas, autônomas, nos ajuda a compreendê-lo? Será que o indivíduo neurótico não nos revela na sua fisionomia, na sua postura, nos seus movimentos, nos seus pensamentos, sentimentos, nas suas vivências e na sua visão de mundo, algo mais do que perturbações funcionais, descarga de impulsos e desvio de libido?

Todo ser humano neste mundo, por isso também o neurótico, é uma abertura para o mundo; existe a seu modo, com todas as suas peculiaridades; assim precisamos observar e compreendê-lo na sua integridade humana. Uma das suas manifestações que se destaca hoje em dia com grande freqüência é o tédio. É por isso que Medard Boss já há muitos anos se viu obrigado a formular o conceito da "Neurose do Tédio", esse mal que é tão típico para nós homens atuais como o foram as neuroses histéricas no tempo de Freud.

O que significa a palavra "tédio"? Este termo procede do latim: tædium, do verbo tædere, e nos dicionários é traduzido como fastio, desgosto, aborrecimento, dissabor, enjôo, repugnância, tudo que enfada, molesta, cansa, incomoda. "Tædium movere si" (tacito) significa: tornar-se enfadonho a si mesmo. Em inglês: tediousness,tiresomely long or slow from dullnes, bored (cansativamente longo ou lento). Em alemão: langweiligkeit (tempo vagaroso, longo). Em francês: ce qui est fastidieux.


No grego antigo, além da palavra ANIA (anía) que corresponde ao significado, tédio, existe também a palavra - THTH (titi) do verbo titaome, que significa falta de algo, escassez. Insistimos nas definições e na etimologia da palavra, não por razões escolásticas, mas captar tanto quanto possível o que nos revela, nos comunica. No tédio existe o aborrecimento, o desgosto, a falta de algo e, especialmente no alemão e no inglês, é ressaltada nitidamente, a vivência do tempo que fica estagnado. Mas não somente o tempo vivencial se altera, também o espaço se torna mais reduzido no sentido do desgosto, enjôo, na falta de iniciativa. Salientamos que estas vivências imediatas do tempo e do espaço são originárias. Os conceitos físico-matemáticos são procedentes delas e nunca, o contrário.


O tédio é um fenômeno que revela tudo que enfada, molesta, cansa, aborrece, incomoda, enjoa e estagna nossa existência. Todos nós em várias circunstâncias vivenciamos o tédio em dias ou horas tediosas. Mas quando o tédio domina e escraviza o ser humano em sua totalidade, então entramos na problemática da Neurose do Tédio.

Preferimos não formular uma definição abstrata e generalizada da Neurose do Tédio, mas tentar esclarecer o que o ser humano dominado pelo tédio nos comunica, nos transmite, nos revela.
Citaremos três breves exemplos de nossa experiência.


Uma pessoa no encontro psicoterápico relatou o seguinte sonho: "Encontrei-me com várias pessoas em frente de um grande objeto semelhante a um escorregador. Uma depois da outra subia e escorregava como se fosse um ritual, como se cumprisse uma obrigação ou praticasse um ato de rotina. Quem comandava todo este jogo era minha mãe."


'À pergunta: - O que lhe ocorre? O que vivencia este sonho? o paciente responde: - É exatamente como minha vida, monótona, tediosa, mecanizada, tudo feito som ânimo.' O fator mãe neste sonho, apesar da sua óbvia importância, não entra aqui em nossas considerações.


Um outro paciente manifestou-se assim: "Sinto-me vazio, pardo, parece que tudo é forçado."
Falado sobre drogas, um outro disse: "Eu e meus amigos tomamos drogas para fugir do vazio que sentimos, para nos livrarmos da monotonia ou do desgosto de viver".


Todas estas revelações eram acompanhadas de grandes sentimentos difusos de culpa, bloqueio do futuro, opressão e falta de iniciativa, além de muitos sintomas psicossomáticos. Nestas manifestações a existência humana está presa na mecanização, monotonia, automatização, estagnação e no aborrecimento.

Por que é que, hoje em dia, estas manifestações reveladoras do tédio e as conseqüentes necessidades de compensação por atividades sensacionais, "stress" contínuo, fuga nas drogas, protestos violentos, geralmente acompanhadas por angústia acentuada, são tão freqüentes e insistentes? Tentamos refletir sobre vários aspectos desta problemática para conseguirmos, pelo menos, uma resposta parcial.


Desde o triunfo das ciências exatas, da deificação do raciocínio matemático, da conquista tecnológica, começou o declínio da religiosidade. Nas civilizações antigas e na idade média, a fé não era um sistema teológico construído, mas a matriz e a raiz da vida humana. Até hoje, nos povos e nas chamadas camadas subdesenvolvidas, o ser humano ainda e capaz de vivenciar o divino, conviver com ele numa comunicação autêntica de EU e TU, dedicando e recebendo afeto, superando assim grande parte da problemática do vazio, do abandono, da angústia e da morte.

Hoje em dia a civilização tecnológica está em pleno desenvolvimento; ao mesmo tempo a religiosidade se desvanece e começa-se o rompimento com o divino, surgindo assim uma nova problemática para o indivíduo. Mas, o que caracteriza a civilização tecnológica industrial, ou melhor, a época tecnocrática? Encontramos a resposta para a questão no desenvolvimento crescente do industrialismo produzindo bens de consumo em grande escala e nas façanhas extraordinárias no campo tecnológico, como por ex. a construção de cérebros eletrônicos que superam , em muito, a capacidade individual do homem no campo de cálculos, coordenação e previsão.

Toda esta atividade pressupõe organizações gigantescas para a planificação e administração e provoca uma expansão dinâmica que, ultrapassando barreiras e fronteiras, abrange todo o globo terrestre. Hoje em dia um país é valorizado unicamente pelo seu grau de sub ou super desenvolvimento, isto é, se está à altura daquelas atividades, qual sua renda per capta, sua produção de bens de consumo, qual o seu poder aquisitivo, etc.

Tanto nos sistemas capitalistas como nos sistemas socialistas estamos num coletivismo tremendo devido ao aperfeiçoamento contínuo dos meios de comunicação, de rádio e televisão, da publicidade e propaganda, à aglomeração humana nas cidades e nas fábricas e à automatização do trabalho. Este coletivismo leva à massificação e objetivização do ser humano. Os meios de comunicação e os produtos de consumo condicionam quase tudo: os modos do homem se comportar, se vestir, e se comunicar; através dos continentes, os costumes e modos de viver se transformam em padrões comuns e slogans substituem o diálogo.

Em 1940, Karl Jaspers já falava das esteriotipias da sociedade moderna como conseqüência da massificação. Nesta situação o indivíduo fica aparentemente protegido através da mediocridade e também da expressão comum "A GENTE" , em vez de "EU" ou "NÓS".
Martin Heidegger escreveu em 1948 no ensaio "O Caminho do Campo" : "O perigo ameaça, que o homem de hoje não mais possa ouvir a sua linguagem. Em seus ouvidos retumba o fragor das máquinas que chega a tomar pela voz de Deus. Assim o homem se dispersa e se torna errante. Aos desatentos o simples parece uniforme. A uniformidade entedia. Os entediados só vêem monotonia ao seu redor. O simples desvaneceu-se."

Não será a perda deste 'simples' o que leva à alienação da própria existência humana? Não será esta alienação em si mesma que desencadeia , no homem, a neurose do tédio e, assim, a mania de experimenta sempre algo diferente, para que ele se liberte da monotonia e da estagnação? Se assim for, o que devemos fazer? Voltar à natureza, abandonar e destruir a nossa tecnologia regredindo até a época das cavernas? Não podemos negar as contribuições óbvias e positivas da civilização tecnológica industrial. Apenas enfrentamos um fenômeno global em toda a sua complexidade e problemática. No seu ensaio "Angústia vital, sentimentos de culpa e libertação psicoterápica", Medard Boss prevê, em 1952, que a neurose do tédio ou do vazio se propagará cada vez mais no futuro próximo.


Queremos focalizar a seguir as manifestações múltiplas da neurose do tédio em alguns fenômenos da nossa época.

Os estudiosos em geral aparecem tensos, com uma expressão artificial, padronizada, preocupados com queixas difusas. Queixam-se da monotonia da vida. Querem solucionar os seus problemas através de palpites, pílulas mágicas e testes vocacionais, e outros recursos fictícios. Tudo isto indica , freqüentemente, uma atitude passiva e a até mesmo uma incapacidade de enfrentar o futuro. A ocupação com rádio e televisão torna-se quase uma atividade compulsiva e a não aquisição rápida dos bens de consumo desencadeia grandes frustrações. O afeto é bloqueado pela agressividade contra si mesmo e contra os outros. Por outro lado, esta alienação em si mesmo provoca grandes cargas de sentimento de culpa e leva à incapacidade de amar no sentido puro e profundo da palavra, acentuando somente o desejo de posse. A maior parte desta problemática fica contida atrás de uma máscara de frieza e inércia.

Repetimos que o tédio se manifesta com muita freqüência e intensidade em nossa época tecnocrática. As características desta época fazem parte dos fatores que Karl Jaspers denominou de 'totalidades'. Como exemplo destas totalidades há os padrões de cultura, estratificação da sociedade, raças, conceitos, tradições, costumes, etc., que existem alheios ao indivíduo. Isso quer dizer que o nascimento ou a morte individual em nada altera essas estruturas, porém a existência individual as reflete, com elas freqüentemente se identifica e a elas escraviza.

Em resumo, todo este breve esboço sobre o declínio da religiosidade, sobre as características da época tecnocrática foi uma tentativa para compreender melhor as manifestações da neurose do tédio, tomando em consideração as estruturas das totalidades atuais de nossa época.

Num dos seus ensaios, Vicente Ferreira da Silva escreveu: "Viver não é reproduzir algo, mas propor-se algo." No seu artigo: "O humanismo na arte moderna" Theon Spanoudis aborda a manifestação da arte moderna como sendo um propor-se-algo-do-homem dentro das estruturas da civilização industrial. Não é necessário querer realizar o 'propor-se-algo' com façanhas extraordinárias, heróicas, destacadas. Somente se conseguir se libertar da massificação e da alienação, encontrando-se a si mesmo, é que o ser humano poderá mobilizar afeto, entrar num relacionamento autêntico de EU, TU e NÓS e se tornar capaz de propor-se algo.

No decorrer de uma psicoterapia tentamos penetrar nas manifestações do tédio e de outras neuroses, através da 'Intimidade compreensível' para a qual - escreveu Edu Machado: 'torna-se necessário um determinado tipo de sensibilidade muito semelhante a do artista onde intuição e criação se fundem na captação do real.'
Conseguir a autenticidade esclarecida da própria existência humana, eis o que se tenta no encontro psicoterápico.

(Texto da Apostila nº. 2 de Daseinsanalyse - 1976. Este trabalho originalmente publicado em 1973, no livro "Medard Boss - Zum Siebzigsten Geburstag" de Gion Condrau.)

Martin Heidegger



A alienação. O homem está fora das coisas, diz Heidegger em seu livro "Ser e tempo", nunca sendo completamente absorvido por elas, mas não obstante não sendo nada, à parte delas. O homem vive, até o fim, em um mundo no qual ele foi jogado. Sendo algo jogado em meio às coisas, estando-lá (Da-sein), constitui algo à parte (Verfall) mas está no ponto de ser submergido nas coisas. É continuamente um projeto (ent-wurf); mas ocasionalmente, ou mesmo normalmente, pode ser submergido nas coisas a tal ponto que é absorvido nelas temporariamente (Aufgehen in).


Entregando-se a uma rotina de superficialidades "públicas" na vida cotidiana. Não é então ninguém em particular; e uma estrutura que Heidegger chama das Man ("o eles") é revelada, como uma tendência da alienação de si mesmo que leva o homem à tendência de se conhecer apenas através da comparação que faz de si mesmo com os outros indivíduos.


A característica do "das Man" (os outros) é a conversa inócua e curiosidade. O que fala e o que ouve não estão em nenhuma relação pessoal genuína ou em qualquer relação íntima com aquilo sobre o que falam, o que, portanto, conduz a superficialidade. A curiosidade é uma forma de distração, uma necessidade para o "novo", uma necessidade para algo "diferente", sem interesse ou capacidade de maravilhar ou se assombrar.


A angústia. Uma coisa pode acontecer que desperta o homem dessa alienação, a angústia (Angst). Ela resulta da falta de base da existência humana. A "existência" é uma suspensão temporária entre o nascimento e a morte. O projeto de vida do homem tem origem no seu passado (em suas experiências) e continuam para o futuro, o qual o homem não pode controlar e onde esse projeto será sempre incompleto, limitado pela morte que não pode evitar.


A angústia funciona para revelar o ser autêntico e a liberdade, como uma potencialidade. Ela enseja o homem a escolher a si mesmo e governar a si mesmo.


Na angústia, a relevância do tempo, da finitude da existência humana, é experimentada então como uma liberdade para encontrar-se com sua própria finitude, um "estar preparado para" e um contínuo "estar relacionado com" sua própria finitude. Na angústia, todas as coisas em que o homem estava mergulhado se afastam, afundando em um "nada e em um lugar nenhum". O homem em meio às coisas páira então, isolado. Ele, na inospitabilidade é incapaz de achar uma casa - amparo, segurança, pois se verá como um forasteiro. Enfrenta o vazio e toda a "rotinidade" desaparece – abrindo-se então, a possibilidade de um modo autêntico de ser.


A angústia segundo Heidegger - "é, dentre todos os sentimentos e modos da existência humana, aquele que pode reconduzir o homem ao encontro de sua totalidade como ser e juntar os pedaços a que é reduzido pela imersão na monotonia e na indiferenciação da vida cotidiana. A angústia faria o homem elevar-se da traição cometida contra si mesmo, quando se deixa dominar pelas mesquinharias do dia-a-dia, até o autoconhecimento em sua dimensão mais profunda." Quando isso ocorre, Heidegger afirma haver duas soluções: ou o homem foge para a vida cotidiana, ou supera a angústia, manifestando seu poder de transcendência sobre o mundo e sobre si mesmo.Assim, a angustia "sóbria" (nüchtern) e a confrontação implicada com a morte são para Heidegger primeiramente ferramentas, têm importância metodológica: certos fundamentos são revelados - abrindo o homem para o ser.


Entre as estruturas reveladas estão as potencialidades do homem para ser alegremente ativo. Pensar o ser é chegar ao verdadeiro lar. Por isso, Heidegger privilegia o futuro, porque é esta projeção para o advir e o golpe da devolução no embate com a morte que lá está e que o leva a pensar e à autoconscientização.


O homem pode então introduzir esse conhecimento existencial no projeto de sua vida, e assim se apropriar da existência fazendo-a efetivamente sua, tornando-se autêntico, não mais um ente sem raízes entre outros.


Essa visão existencial do homem, em que ele se conscientiza das estruturas existenciais a que está condicionado e que o tira da superficialidade em que desenvolve seus conflitos tornou-se sedutora para a psiquiatria, surgindo Psiquiatras conhecidos por se alimentarem de seus estudos - como Binswanger, Medard Boss, Rollo May, Ronald Laing entre outros.

Zigue-Zagueando... (T.Villano)



Não quero nada... sou todo ausência! Esvaziei-me de fé, de desejos e tentações...
Sou de um amor encantado, que engolido por um sapo espera o princípe morrer para tocar fogo em todo seu reinado. Vim de muito tempo atrás. Eu vi o nascimento das estrelas e vi o mar ficar prenhe nas espumas brancas de suas ondas... Nasci do zigue-zague das certezas. Fui gerado da loucura dos gênios, onde a lucidez estuprou a razão - no manicômio clandestino dos que nunca foram, nem serão.


Aqui sem a loucura não é possível sobreviver. Eu vejo pessoas que enganado a lucidez, tornaram-se animais de carga, carregando fardos, regras e entulhos por pura imposição - e sem questionar caminham de cabeças baixas. Vejo pessoas abandonadas ao vício das paixões, dos entorpecentes, da bebida e da comida na tentativa em vão, de tapar o apito do assombro que a angústia dá e também recolhe. Alguns já nem conseguem dormir, outros não suportam o silêncio. Não conseguem receber o abraço do ócio e então, o trabalho, as viagens e as compras se tornam compulsão - avidez por novidades.


Não veêm nos filhos a chegada (alethéia) e ainda querem lhes impor suas regras sobre a vida, deixando de acolher um novo modo de ser. Encontram explicações e teorias que forçam a capacidade de abertura. Teoria e explicação: são coisas que não são, mas a gente finge ser para saber como seria. Alguns, respodem positivamente. Outros, ainda dizem: "Vejam eles (os outros), eles estão sempre bem! E eu? Não consigo me enquadar, o problema deve ser eu! Eu tenho isso, eu devo aquilo, o que vou ser na vida?" Caem então, na sedução do mundo instituído e enlouquecem sem a raíz, que acolhida pela terra brotará para os céus - o mistério incompreensível do Infinito.
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Mas, aqueles que sabem, sabem do que? Sabem de que não se trata de absolutamente Nada, comunicam-se com a floresta, os bichos e a longa noite. Lá, tornam-se forasteiros iluminados, acolhem o sentido das coisas, o desabrochar da verdade em suas brincadeiras de velar e des-velar. Na inospitabilidade, fundem-se e aceitam a sua vocação, o chamado para longe. Eles assim, se tornam verdadeiramente humanos e compreendem mais tarde, o homem-máquina vestido de seus vários títulos - que ainda pela razão, busca desesperado a Grande Expicação. Mas, a inteligência matemática incapaz de compreender suas lacunas, constrói para si estatísticas, eliminando aqueles cujo o estudo não lhes interessa.
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O soco na boca do estômago e a insegurança da ausência de amparo, traz para si a certeza enganosa das idéias absolutas - explicadas pela encobertura da intencionalidade. O que só se pode na experiência, esvaziados de conhecimento, descobrir pela levitação das idéias - o grande Sagrado da Existência - A VIDA. Pura doação e ao acaso gratuita. O milagre na ponta do nariz. A angústia que brota do sorvedouro da existência, que do aperto no peito nos diz: Eis-me aqui!