Esquecimentos


Era manhã, o sol batia em sua janela. Forte como o rei dos astros, sentia o frescor da brisa e o calor escaldante da vida, bronzeada pela luz de mais um dia que nascia. O cheiro forte de café vindo da sala de estar, o vento, o sol e aquele momento o fazia regressar a um tempo passado, onde ele criança, brincava a beira do lago junto a sua melhor amiga da infância. Brincavam e riam como se não houvesse futuro para se preocupar, nem passado para se questionar. Não perguntavam o porque da vida, de onde vieram, para onde iriam. Sempre de hora em hora, os olhos da mãe percorriam os caminhos das crianças, em alguns momentos no campo, em outros no lago, e mais tarde se brincando com as poucas ovelhas que ali viviam. Assegurava-se assim, de que nenhum perigo os ameaçava. Lembrava-se da época onde tudo parecia atemporal. Sentia sua infância como uma época que parecia não fazer parte desta vida. Hoje cansado, cheio de responsabilidades. Mas, eram férias e podia permanecer nessa nostalgia por mais algumas horas. Fazia do ócio um lugar de acontecimento. Não havia tédio nem angústia. Ria sozinho ao ver nitidamente o rosto daquela menina e a sua vida num piscar de olhos. Os banhos de rio, os brinquedos sempre improvisados com algum apetrecho que a natureza os concedia. As risadas e os beijos inocentes roubados em intervalos de muita alegria seguidos de um leve rubor.
Em um determinado momento: sentiu em seu coração um aperto. Não era um aperto comum. Ele há muito havia pagado essas lembranças de sua mente, e naquele momento tudo veio nitidamente à frente dos seus olhos. Como um véu que soprado pelo vento revelara as memórias de um tempo que gostaria de lembrar mas, também esquecer. O aperto aumentara, e sem intenção a cena renascia e um som de explosão que retumbava no fundo de seu peito. Naquela manhã ele não veria mais sua amiga. Aquela menina, linda como o mar e branca como a lua, haveria de mais tarde sofrer as intemperanças do destino. Na volta de sua viagem à cidade, uma carreta desgovernada acertara o carro de seu pai, não deixando sobreviventes. Não conseguia crer como criança, que pudesse existir a finitude, não conhecia a canção do adeus. E agora, a morte entrara em sua infância estuprando sua inocência, sua alegria e suas noites. Desde então, ele perdera seu sono, quando as luzes se apagavam era tomado de um pavor seguido de um terror noturno descomedido. Não lembrava de seus gemidos, mas, acordava sempre de manhã aos braços da mãe. Então sabia que tivera mais uma daquelas noites. Com o passar do tempo, ele foi esquecendo sua amiga, tudo era deixado de lado, forçosamente como um cego que precisando viver, enxerga dentro de si seu universo particular. Muitos e muitos anos depois, agora o tempo acendia novamente a luz, trazendo a tona às lembranças de pureza e a foto profana que havia visto no jornal, do carro carbonizado. Silêncio...
Levantou, tomou um gole de água, lavando seu rosto em seguida. Tentara acalmar seu coração. Desceu as escadas, seus olhos estavam vermelhos, seu corpo duro e suas mão trêmulas. Apanhou uma xícara de café e um pedaço de bolo amanhecido. Sua esposa estava no jardim e quando escutou barulhos na copa, se dirigiu até seu homem. Percebeu que havia algo estranho. Quando ele a avistou, viu por instantes o rosto de sua menina, sua velha amiga fantasma. Uma paz repentinamente o invadiu tomando conta de suas dores e resguardando sua tristeza. Olhou mais um pouco para ela, sorriu e disse: - Eu já te falei hoje que te amo? Havia muito que não se olhavam direito, nem trocavam carícias. As tarefas da vida e os entulhos acumulados do passado haviam o distanciado de sua mulher. Ela por resignação estava por anos acomodada numa melancolia disfarçada, de quem no fundo sabia que havia perdido seu homem. Ele havia esquecido e deixara adormecer um amor que nasceu do sem-explicação. Ele continuava a olhá-la, e sua mulher percebeu que havia algo incomum. Seria seu marido retornando do sono? Seria ele voltando a ser a velha pessoa de sempre?
Levantou, abraçou sua mulher e em seus ouvidos murmurou: - Agora seu porque me apaixonei por você! Voltei meu amor! Não descuidarei mais de mim, nem de você! Beijaram-se e correram as pressas para fazer amor... Beijaram-se de amor e de saudade. De um amor que escondendo-se, resolvera ser achado, reencontrado. O que se esconde, deseja ser encontrado. Todo o fulgor do tempo não fazia mais sentido. Envelhecidos voltaram a se amar. O frescor da juventude se instalou e invadiu de novo seus corações e seus corpos. Depois daquele dia, suas vidas nunca mais foram as mesmas...

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