Hidden

A essência esta onde nossos olhos não podem alcançar... O que esta escondido, não por escolha, mas por precisar estar submerso naquilo que nossa consciência não pode de um só vez perceber, guarda os segredos de nossa história, de nossos medos e de nossos desejos. Entrar-me-ei nos jardins secretos de minha existencia? Poderei eu não enlouquecer com aquilo que posso esconder me mim mesmo? Vou adiante? Ou estuprarei meus receios e caminharei adiante?

Na noite passada eu sonhei...


Antes de dormir, fui dormir com o gosto de carvalho em minha boca, gosto de húmus, com perfume doce de um vinho que não se repetirá. No sonho, sangue e algodão... são cores que enxergo em uma sinestesia desenfreada. Noite? Dia? No céu azul eu via o sol mas também a lua... Acordei do sonho dentro do sonho. Ah! era um sonho lúcido... Via-me num grande campo verde, rodeado de animais selvagens que me observavam, a espreita... Não tinha medo, estava prenhe de uma alegria serena e um sorrido juvenil... sabia que era perigoso mas evitava dar passos p/ trás... Me arriscava como quem provoca a morte sabendo que não se morre no mundo da própria criação... Eu tinha o controle de tudo menos de uma coisa: o desejo e o medo... E corria p/ o precipício sabendo que não devia, que não podia... mas queria aprender a voar mesmo sabendo que minhas asas estavam na mão de uma mulher... E caía em camera lenta, despencando do nada ao nada... num sonho estranho, sem interpretação ou explicação...

caminhos

Talvez eu fique, talvez eu vá.
Quero sombra mas também quero o clarão da lucidez
que cegou o velho sábio com os inigmas da existencia
Eu quero água, e também quero vinho
Aqui onde estou, posso estar acompanhado
Mas também posso estar sozinho.
Nos becos por onde caminho
Poucos são aqueles que encontro
Mas quando os vejo, digo-lhes: não me siga amigo
Caminhe ao meu lado onde as margens se cruzam mas não se destinam.
Eles podem se cruzar, mas por onde exploro meus passos
Não há nada além de mim mesmo
E assim que os pássaros se aquietam e o silêncio ressoa
Fundo-me na plenitude do Vazio - sou o que sou
sondei meus labirintos...

piparotes

Posso respeitar a tenacidade corajosa de quem se mantém fiel a suas convicções, mas no que ela difere da teima de quem se esconde atrás dessa fidelidade porque não sabe negociar com quem pensa diferente e com o emaranhado das circunstâncias que mudam? Aplicar princípios e nunca se afastar deles é uma prova de coragem? Ou é a covardice de quem evita se sujar com as nuances da vida concreta?

Olhando para trás, descubro (com certo orgulho) que, ao longo da vida, fiz inúmeras concessões, inclusive na hora de escolhas fundamentais. Poucas vezes lamentei não ter sido coerente. Mas muitas vezes lamento não ter sabido fazer as concessões necessárias, por exemplo, na hora de ajustar meu desejo ao desejo de pessoas que amava e de quem, portanto, tive que me afastar.

A coerência é uma virtude só para quem se orienta por princípios. Para o indivíduo moral, que se orienta (e desorienta) por dilemas, a coerência não é uma virtude, ao contrário, é uma fuga (um tanto covarde) da complexidade concreta. Oscar Wilde, que é um grande fustigador de nossas falsas certezas morais, disse que "a coerência é o último refúgio de quem tem pouca fantasia" e, eu acrescentaria, de quem tem pouca coragem.

(C. Calligaris)

Eterno Retorno

Tudo vai, tudo volta; eternamente gira a roda do ser.
Tudo morre, tudo refloresce, eternamente transcorre o ano do ser.
Tudo se desfaz, tudo é refeito; e
ternamente fiel a si mesmo permanece o anel,
Eternamente constróí-se a mesma casa do ser.
Tudo se separa, tudo volta a se encontrar; do ser.
Em cada instante começa o ser; em torno de todo o "aqui " rola a bola "acolá ".
O meio está em toda parte. Curvo é o caminho da eternidade.


(NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, "0 convalescente", § 2).


O conceito do Eterno Retorno nos remte a um questionamento sobre a vida: na existência escancarada de cada ser, amamos ou não amamos a vida? Se tudo torna e retorna - o gozo, a dor, a angústia, criação, destruição, alegria e tristeza, saúde, doença, bem e mal, belo e feio… tudo vai e tudo retorna... Se tudo isso volta sem nenhuma ordem ou ciclo — isto é divino ou maldito? Amamos a vida a tal ponto de desejarmos ela, infinitas vezes sem fim? Vivendo todos os nossos ocasos, bandições e decepções com a mesma intensidade? Seríamos capazes de amar a vida que temos - a única vida que temos - a ponto de querermos vivê-la sem a menor alteração, infinitas vezes ao longo da eternidade? Temos tal amor ao nosso caminho?

Todas as coisas que parecem ser antagônicas. Ou seja, todos os opostos na realidade não se opõem, mas são faces de uma mesma realidade. Um complementa o outro, são continuidades de apenas um jogo. Alegria e tristeza são faces de uma única coisa experienciada em diferentes graus. O retorno de tudo não se reporta a uma demarcação temporal cíclica e exata, mas às nuances de vivências que se complementam e dão o colorido da vida.

O devir não ocorre exatamente igual, são variações de sentidos já vivenciados. O que ja senti de bom e de mal, não serão iguais amanhã, mas voltarei a experimentar esses estados em diferentes variações...

Então, se tudo retorna - será que queremos mesmo viver à eternidade onde nada de novo irá acontecer além de vivências com nuances variadas de uma mesma realidade?
Só você pode responder a essa pergunta, ninguém pode fazer isso por você. Lembre-se: uma resposta lógica, pronta e acabada não faz sentido. Há de remoer e buscar nas entranhas da angústia e nas portas do desespero reflexões fecundas, prenhes de insights...

Temos tal amor ao nosso caminho? Aos destinos que trilhamos? Sou Autor de minha vida? Escrevo ela com minha carne e meu sangue? Ou outras pessoas escrevem p/ mim, tornando-me mero ator ou coadjuvante? Sigo meu caminho ou ando por trilhas já trilhadas?

É hora de criarmos novos valores, e irmos p/ uma reformulação total de ideais...

O castigo físico


O castigo físico

O castigo físico acaba com a autoridade de quem castiga, pois revela que seu argumento é a força

UMA RECENTE pesquisa Datafolha (Folha, 26/7) mostra que, no Brasil, 69% das mães e 44% dos pais admitem ter batido nos filhos.

Parêntese. Os pais são tão violentos quanto as mães: simplesmente, eles passam menos tempo em casa e lidam menos com o "adestramento" dos filhos.

A pesquisa constata também que 72% dos adultos sofreram castigos físicos quando crianças. Como se explica, então, o fato de que 54% dos brasileiros se declaram contrários ao projeto de lei que proíbe os castigos físicos em crianças? Há várias hipóteses possíveis.

1) Talvez quem apanhou quando criança não queira perder o direito de se vingar em cima dos filhos.

2) Talvez não aceitemos a ideia de que os nossos pais tinham sobre nós uma autoridade maior do que a que nós temos ou teremos sobre nossos filhos.

3) Na mesma linha, talvez estejamos dispostos a apanhar dos superiores sob a condição de sermos autorizados a bater nos subalternos.


Nota: aceitar apanhar dos mais poderosos para poder bater nos mais fracos é a caraterística que resume a personalidade burocrático-autoritária do funcionário fascista.

4) A autoridade, dizem alguns com razão, sempre tem um pé na coação e recorre à força quando seu prestígio não for suficiente para ela se impor. Hoje, a autoridade simbólica dos adultos é cada vez menor. É provável que os próprios adultos sejam responsáveis por isso (principalmente, por eles se comportarem cada vez mais como crianças); tanto faz, o que importa é que o prestígio dos adultos não lhes garante mais respeito e obediência. Portanto, a palavra aos tabefes.

É um erro: o castigo físico acaba com a autoridade de quem castiga, pois revela que seu argumento é apenas a força. A reação mais sensata da criança será: tente de novo quando eu estiver com 15 anos e 1,80 m de altura.

Esses e outros argumentos a favor da palmatória não encontram minha simpatia. Até porque verifico que os rastos desses castigos não são bonitos. Mesmo um simples tapa é facilmente traumático tanto para o pai que bateu como para o filho: ele paira na memória de ambos como uma traição amorosa que não pode ser falada por ser demasiado humilhante (para os dois). Há pais violentos que passam a vida na culpa, e há crianças cuja vida erótica adulta será organizada pela tentativa de encontrar algum sinal de amor no sadismo dos pais.

Apesar disso, se tivesse sido consultado na pesquisa, provavelmente eu teria me declarado contra a nova lei, por duas razões.

A primeira (e menos relevante) é que existem violências contra crianças piores do que a violência física, e receio que uma lei reprimindo o castigo físico nos leve a pensar que, por assim dizer, "o que não bate engorda". Infelizmente, não é preciso bater para trucidar uma criança.

A segunda razão (e mais relevante) é que a nova lei não surge num contexto em que os pais teriam poder absoluto sobre o corpo dos filhos. Mesmo sem a nova lei, o professor que visse sinais de violência no corpo de um dos alunos avisaria à polícia e à autoridade judiciária. O mesmo valeria para o pediatra ou para o psicoterapeuta. Inversamente, um pai cujo filho fosse batido na escola processaria o professor e a instituição. Também, com um pouco de sorte, uma criança batida pode denunciar o adulto que a abusa.

Pergunta: para que servem leis que pouco mudam o quadro legal e só explicitam e particularizam proibições que já vigem de modo geral? Essas leis me parecem ter sobretudo a intenção de afirmar, demonstrar e estender o poder do Estado na vida dos cidadãos.

Uma coisa aprendi com Michel Foucault: o poder moderno é raramente extravagante em suas exigências. Como ele não tem conteúdo específico, mas gosta apenas de se expandir, ele escolhe o caminho mais fácil, conquistando a adesão "espontânea" de seus sujeitos. Como? Simples: operando "obviamente" "pelo bem dos cidadãos" no caso, pelo bem das crianças.

Resumindo:

1) sou absolutamente contra qualquer castigo físico; 2) sou também contra a extensão do poder do Estado no campo da vida privada, por temperamento anárquico e porque sou convencido que, neste campo, as famílias erram muito, mas o Estado, quase sempre, erra mais.

Preconceitos...


... É banal que, ao descrever uma reunião, digamos: "Havia cinco pessoas". No entanto, havia seis: a gente não se contou entre os presentes. Esse deslize exemplifica o oitavo pecado capital: tirar o corpo fora, ou seja, falar dos outros e do mundo como se nossa subjetividade não atrapalhasse nem o mundo nem nossa fala. O preconceito é filho desse pecado: se me esqueço de mim e de minha história na hora de falar dos outros, é provável que eu acabe lhes atribuindo exatamente aquela parte de mim ou de minha história que quis suprimir...

C. Calligaris

(...)

"A união faz a força". Mas faz a força a que preço? Uma história recente dizia que a massa era poderosa e irresistível, mas irremediavelmente burra e cruel. Meus pais tinham conhecido os 20 anos do fascismo italiano e assistiam ao desastre do socialismo real, manifesto (para quem quisesse ler e ouvir) desde os anos 50. Não seria no Brasil de hoje que eles seriam desmentidos: partidos e movimentos, sobretudo quando têm uma forte coesão, parecem ser sempre piores do que as pessoas que os compõem.

Mais tarde, consagrei minha tese de doutorado a esta pergunta: como é possível que homens quaisquer, como você e eu, sejam levados a funcionar como o braço armado de genocídios e extermínios que repugnariam a suas consciências se eles agissem sozinhos? Cheguei a uma conclusão que tento resumir: não é por medo de punições nem por convicção ideológica. É porque, para o sujeito moderno, tanto a dúvida sobre quem ele é quanto a incerteza sobre o que ele quer da vida são fardos imensos. Ele pode ser levado, portanto, a sacrificar sua individualidade à condição de que o grupo lhe ofereça a ilusória impressão de "saber" quem ele é e quais são suas tarefas. Um homem qualquer pode colocar fogo numa sinagoga repleta ou despedaçar nenês contra uma parede para ganhar o "conforto" de sentir-se parte eficiente de um grupo.

A desconfiança dos grupos não se desmentiu quando me ocupei um pouco da função da turma e da gangue (sobretudo adolescente) na violência criminosa. Por caminhos psicológicos um pouco diferentes, aqui também o grupo potencializa o que há de pior em alguns de nós. Sentir-se reconhecido pelos "compadres" é uma razão suficiente para esquecer-se de inibições e freios morais básicos. Os quatro rapazes que, em 1997, em Brasília, queimaram vivo o índio Galdino, tomados um a um, nunca teriam perpetrado aquele horror.

Aparte: a sedução do grupo não constitui um atenuante. Ao contrário, a covardia que leva alguém a trocar sua humanidade pelo conforto coletivo é, a meu ver, uma agravante.

Dos grupos só se salvaria, em princípio, a família: já em 1812, o alemão J.D. Wyss publicara "Os Robinsons Suíços", em que transformava a gloriosa solidão de Robinson Crusoé no ideal da vida familiar numa ilha deserta. A idéia alimentou um seriado televisivo americano nos anos 60. Na mesma linha e época, a família de "Perdidos no Espaço" chamava-se Robinson. Mas, desde os anos 70, a antipsiquiatria inglesa (Laing, Cooper, Esterson) mostrava que a família era a fonte originária do sofrimento neurótico e da loucura.

Em suma, durante os dois últimos séculos, inventamos utopias coletivas, mas elas devoram nossa liberdade; sonhamos com o calor do lar, mas ele parece ser responsável por muitos de nossos males. Atrás da "união que faz a força", paira o medo (justificado) de que, nessa união, nossa singularidade perca o melhor de si. E, atrás do sonho de Robinson, paira o pavor (também justificado) de uma solidão sem conforto.

Para lidar com esse paradoxo, quando sou chamado a "ajudar" grupos em dificuldade (famílias e casais), adoto um pequeno artifício: em vez de explorar as falhas (ou seja, em vez de perguntar o que cada um estima estar perdendo por causa da relação), tomo, às vezes, o caminho oposto e pergunto o que cada um estima estar ganhando na convivência com o outro.

É pouco, mas é um jeito de as pessoas se lembrarem de que, apesar de todos os pesares, vale a pena pagar um preço para elas não viverem sozinhas. Claro, depende do preço.