Jean-Yves Leloup


...Quando amamos alguém, um dos sinais de amor verdadeiro é que amamos os seus defeitos. É fácil amar os defeitos de nossos filhos. É difícil amar os defeitos dos adultos ou de nossos cônjuges. Esse amor de que falamos não significa complacência, não é dizer ao outro que me agrada o que ele tem de desagradável pois isso seria mentira e hipocrisia. O amor de que falamos é dar ao outro o direito de ser diferente. E´dar a ele o direito de experimentar sua liberdade. De experimentar em mim mesmo esta capacidade de amar o que é amável e de amar, também, o que não é amável. Dessa maneira passaremos, de uma vida submissa para uma vida escolhida...

Desertos, desertos (Jean-Yves Leloup)


CADA UM TEM SEU DESERTO A ATRAVESSAR

O que evoca para nós a palavra deserto? Silêncio, imensidão, vento abrasador? Não apenas. Evoca também sede, miragens, escorpiões... e o encontro do mais simples de si mesmo no olhar assombrado e surpreso do homem ou da criança que brota não se sabe de onde – entre as dunas?
Existem os desertos de pedras e de areias, o deserto do Hoggar, de Assekrem, de Ténéré e do Sinai e de outros lugares ainda... o deserto é sempre o alhures, o outro lugar, um alhures que nos conduz para o mais próximo de nós mesmos.
Existem os desertos na moda, onde a multidão se vai encontrar como um pode tagarela, em espaços escolhidos, onde nos serão poupadas as queimaduras do vento e as sedes radicais; deles se volta bronzeado como de uma temporada na praia, mas ainda por cima, com pretensões à “grande experiência”, que nos transformaria para sempre em “grandes nômades”...
Existem, enfim, os desertos interiores. Temos que falar deles, saber reconhecer o que apresentam de doloroso e tórrido, mas tentando também descobrir, aí, a fonte escondida, o oásis, a presença inesperada que nos recebe, debaixo de uma palmeira sorridente, em redor de uma fogueira onde a dança dos “passantes” se junta à das estrelas. Pois o deserto não constitui uma meta; é, antes, um lugar de passagem, uma travessia. Cada um, então, tem a sua própria terra prometida, sua expectativa que deverá ser frustrada, sua esperança a esclarecer.
Algumas pessoas vivem esta experiência do deserto no próprio corpo; quer isto se chame envelhecer, adoecer ou sofrer as conseqüências de um acidente. Esse deserto às vezes demora muito a ser atravessado.
Outras pessoas vivem o deserto no coração das suas relações, deserto do desejo ou do amor, das secas ou dos aborrecimentos que não aprendemos a compartilhar.
Há também os desertos da inteligência, onde o mais sábio vai esbarrar no incompreensível e o mas consciente no impensável. Só conseguimos conhecer o mundo e as suas matérias, a nós mesmos e às nossas memórias quando atravessamos os desertos.
Temos, finalmente, o deserto da fé, o crepúsculo das idéias e dos ídolos, que havíamos transformado em deuses ou em um Deus, para dar segurança às nossas impotências e abafar as nossas mais vivas perguntas.
Cada pessoa tem seu próprio deserto a atravessar. E a cada vez será necessário desmascarar as miragens e também contemplar os milagres: o instante, a aliança, a douta ignorância e a fecunda vacuidade. (Jean-Yves Leloup)

Espanto... (T.Villano)


Filosofia da Experiência

As respostas que quebram as contradições, os paradoxos são respostas ilusórias para abarcar nossa angústia e incerteza. Essas respostas desconhecem o real alcance das questões, fazendo sempre desaparecer as perguntas. A meditação é a que nos coloca dentro, no interior das próprias questões, nos mostrando o real alcance delas. É no mover-se das questões, na reflexão pura, sem a intenção de pousar em algum lugar, sem a intenção de chegar a um fim que se criam às perspectivas. O círculo das interrogações não busca a saída e sim a profundidade, tornando o desconforto da interrogação um lugar salutar, uma terra fértil de crescimento e abertura para o sagrado, para o infinito.

O senso comum não consegue observar o essencial, pois o essencial não ocupa o lugar do útil. Nossa cultura pensa a partir do valor de utilidade, o que pode ser eficiente, rápido e imediato. Quando ele se questiona pela condição de encontrar uma resposta, ele já sabe o que quer encontrar, sabe onde quer chegar. O modo de pensar ocidental pensa a verdade a partir de um senso de conveniência, num ajuste: estar adequado. Ou seja, o que se exprime deve estar em conformidade com o que se designa. O verdadeiro é o real, o falso é irreal. Tautologia preguiçosa. O critério se adequa a coisa? Ou a coisa ao critério? Não estamos mais na idade média, precisamos descobrir um outro modo de pensar e ver o ser humano, pois existe uma verdade que só diz respeito ao conhecimento.

É o sentido que vem ao encontro do homem, não o homem que vai ao sentido. Intencionalidade é o modo de ser da consciência. As coisas não podem ser reduzidas ao que queremos que elas sejam. É preciso que ela se dê num âmbito de encontro onde se dá a abertura do apresentado com o ser apresentante. Deixando a coisa se manifestar. Estar aberto é um exercício, um modo de ser. Quanto mais respeitamos a alteridade mais somos. O homem pode captar o sentido, mas não é ele que dá, que doa. Somente o homem pode se abrir e acolher o ente a partir do que ele é. O que torna possível essa abertura é a liberdade. As escrituras sagradas já diziam: a verdade liberta. Logo, a essência da verdade, o modo de ser da verdade é a liberdade. A doação prévia da coisa tal como ela é acontece se estivermos instaurados como livres dentro do aberto que vincula toda presentação. Não significa perder-se nos entes, mas, dar um passo para trás, efetuar um recuo, ter distancia para se aproximar de mim como aquele que recebe. Um ente é não livre quando esta voltado para si mesmo. Só pode se aproximar quem é capaz da distância. Abrir mão da subjetividade esvaziar-se.

O pensamento acolhe no silêncio que ouve. O pensamento se despoja a dar-se no ser.

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Um mundo cuja beleza foi enterrada pelo asfalto, pelas grandes vias, prédios e pontes sob rios de águas límpidas. Abro a porta de casa: - cadê o mundo? E o vento sussura o prelúdio de tempos de angústia. O homem é máquina? Sua essência é a dos artefatos ideológicos metafísicos? Existe algum ser humano por aí?

Power (T.Villano)


Visão máxima de nossa era. Tudo se torna uma máquina de poder (profissão, religião, inteligência, autoritades). Ninguém é mais de igual para igual. Está tudo desnivelado. Queremos controlar tudo até a Natureza e seus recursos, os animais e seus co-irmãos. E ainda não percebemos que quanto mais controle - maior o descontrole.
Tudo pode ser perdido se diante de nossa liberdade não soubermos aceitar e manter correspondêcia com nós mesmos. Explico: quando agimos de acordo com nosso "si mesmo" somos fiéis a nossos ideais e a nossas virtudes (que como diria Nietzsche - deveria ser re-inventada e sempre ultrapassada descolando-se da tradição). Todos aqueles que oferecem soluções e possibilidades de promessas e ideais pré-fabricados pelos sistemas intelectuais e racionais de nossa época, podem se perder pelo único erro e mais originário do ser humano: - poder. É possível oferecer a escada do vizinho para alcançar seu desafio?
Vemos hoje o exercício descomedido do poder. Os gregos chamavam de Hybrys (descomedimento, algo como o excesso de avidez, desejo e ganância) evidentemente essa palavra continha uma força muito maior do que nossas traduções mas, para eles, não existia essa idéia de progresso. Em que sentido? De conquista, de acúmulo de títulos, bens, status e territorialismo. Eles se contentavam com outro tipo de qualidade de vida. Hoje, há algo mais assustador: o excesso de preocupação estética. Vivemos numa geração onde a beleza externa marca seus limites. O ter em detrimento do ser. Quero ser admirado, visto, reconhecido mas, a que preço? Dominando os indícios da velhice: silicone, botox, cirurgias. O que vale é demonstrar superioridade seja ela intelectual, religiosa, financeira ou acadêmica.
Nossas relações se embobrecem pois até a forma com nos relacionamos com os outros, pais, filhos, maridos, esposas ficam contaminados pelo desejo de exercer domínio e poder. Além de tudo ser fast-food e descartável (inclusive as pessoas). Perde-se o respeito e não se conquista intimidade, afinal o poder intimida. As relações são recicláveis, descartáveis como tudo ao nosso redor. Não se cria mais raízes com nada, é tudo rápido e passageiro. Troco de mulher como troco de carro. Alguns possuem mais carros que amigos, mais celulares que tranquilidade.
Seria a hora de hora de repensarmos nosso momento histórico? Creio que sim. Vivemos em um momento de transição ecológica e não só. Todos param diante dessa avidez por novidades, dessa fome descomedida de tudo controlar e dominar. A palavra "crise" vem de uma palavra grega que significa: momento de decisão. Algo está mudando e precisa ser mudado.
Ninguém mais consegue lidar e aceitar a frustração, deve-se obter satisfação e prazer ao máximo. Não se convive mais com a dor, ela deve ser banida portanto - tome um medicamento. impotência? Viagra.
Não se gasta mais tempo comtemplando o sol, os filhos brincando na praia, construindo suas histórias em seus castelos de areia. Não se brinca mais com os animais, ao contrário - eu quero adestrá-lo ao máximo. E o outro lado? Escravizamos eles para que se tornem lucro e retorno financeiro. As igrejas, pelo poder, buscam adeptos para lucrar e conseguirem fundos - quem dá mais? Deus te recompensará. Como se Deus fosse comprável. Como se ele fosse uma pessoa que como nós, visamos o troco, o dar para o receber. Humanizamos ele.
A essência se perde, não se conhece mais nossos próprios recursos interiores para lidarmos com as dúvidas, tudo precisa ser explicado, tudo precisa ser conhecido, medido e solucionado. Mistério? Essa palavra foi banida pois a luz da razão deve iluminar todos os cantos escuros, nada deve ficar sem resposta. Não conseguimos dormir mais diante do nada e da interrogação. Deus deve ser explicado, o espírito e suas leis invisíveis decifrados. Os poetas e artistas perdem forças pois tudo é mercado. Um dia, se não sermos a mudança que queremos ver (Ghandi) seremos mais um dos produtos mercadológicos onde nos anúncios virtuais poderemos comprar companhia, maridos, filhos e amigos... mas já estamos perto disso não é mesmo...

Amparar-se (T.Villano)



Outro dia escutei um profissional dizer - "Você precisa de apoio, procure um padre, um rabino, um professor ou um mestre". Devo refletir sobre isso, e fazer uma pequena digressão.
Quando nascemos e fomos lançados ao mundo é digno que nossa vida dependa de uma mãe ou alguém que exerça seu papel. Depois precisaremos de peito e de leite materno. Assim, com o passar dos anos chegaremos a mamadeira na mamadeira e logo nas sopas e papinhas. mais anos se passam e então já aprenderemos a comer sozinhos. Quando adultos teremos que nos a ver com a solidão, a angústia e o desamparo. Logo, nos damos conta que somos ou teríamos de ser responsáveis e temos que trabalhar para nosso sustento.
Muito bem. Agora, por que um profissional aconselha um outro ser humano a regredir e procurar uma outra teta substituta, um apoio que o levará de novo a dependência e a submissão? Como adultos e seres humanos devemos ter a maturidade de incentivar esse ser humano a encontar apoio sim, mas em si mesmo. Por que não ensinar a construir para si recursos internos que possibilitem que esse homem, encontre amparo em seu desamparo e faça de sua solidão um lindo jardim? Ele já não pertence ao reino da infância e se pertencer, que possamos ajudá-lo, sem reforçar a dependência, a resgatá-lo no estágio onde se perdeu, onde se estagnou para assim devolver-lhe os caminhos onde sua maturidade poderá lhe ser devolvida - ele e só ele poderá chegar nesse caminho.
O que fazemos é apenas lhe dar espaço, ouvir e abarcar sua angústia, seu desespero - para então, devolver-lhe a si mesmo. Depois que abarcarmos o seu terror e o devolver-mos a si próprio, com caminhos menos nebulosos e com pensamentos mais serenos -caberá a ele decidir, escolher. Devemos ajudá-lo a se responsabilizar por suas escolhas e por suas decisões, não a deixar que um Padre, um rabido, um professor ou um mestre, tome decisões por ele, faça escolhas por ele e reforce um estado de inutilidade e descrença em sua própria força e em seu próprio vigor.
Devemos estar solícitos as suas necessidades e assim, fazê-lo recuperar sua dignidade, equilíbrio e força interior. Para então de uma vez por todas ser ele novamente senhor de si mesmo, sem se fechar a dor, pois por onde ela entra, também entra a alegria. Mas, não é fácil viver, a existência é um diamante precioso, onde a lapidação se torna um esforço contínuo.
Como dizia o poeta: "Se você quer organizar seu país, organize suas cidades. Se você quer organizar suas cidades, organize seus estados. Se você quer organizar seus estados, organize suas famílias. E por fim, se você quer organizar suas famílias - ORGANIZE A SI MESMO.

Oração dos Pequenos (T.Villano)


Pai, por favor, peço nessas palavras que o senhor, às vezes, possa dar-me o direito à açoita, a ira e a indignação. Zangue-se comigo porque eu me zango. Leve a desgraça do mundo como o vento leva as folhas secas das árvores.

Deixe-me nú diante de ti. Deixe-me viver os dias com a mesma juventude de meus filhos. Conceda-me, às vezes, a boemia . Faça-me poder sempre ter amor em meu coração e não dá-lo a quem não tem ternura e cordialidade. Deixe-me sempre um gole de vinho em minha taça. Faça-me ver o mundo do avesso e ainda assim encontrar beleza em tudo o que vejo.

Faça-me perder o medo do do homem e acreditar que o demônio vive apenas dentro dele. Exorcise os seres humanos criados ao ódio, ao julgamento e a condenação, eles no fundo querem apenas condenar o demônio que não reconhecem dentro de si. Não deixe que me ensinem a vida, pois como dizia Rilke, eles nos ensinam a vida deles.

Feche a porta à mendicancia e deixe que todos possam brilhar na luz que reflete sua presença. Carregue um pouco minha dor, eu me orgulho muito dela e de todo meu sofrimento mas, devolva-me em seguida para que possa sempre me lembrar do que não devo me tornar. Devolva a dor daqueles que estão vazios e em angústia.

Pague a vingança dos que merecem. Devolva a dignidade dos homens de bem. Leve-me ao mar, deixe com que nele eu possa ter mais filhos sob a espuma branca de suas ondas. Dá-me a lua como amante, pois ela é sempre a mesma e volta todas as noites com sorrisos diferentes. Não abandona e jamais perde o brilho.

Faça de uma vez por todas - tudo perder o sentido - para que então, com a verdade escancarada, o ser humano possa voltar à sua origem. A verdade como um soco na boca do estômago - desvelamento. E que ao recuperarmos o ar, possamos juntos recuperar a diversidade e aceitar o mistério da luz e da escuridão, amantes desde a fundação do mundo.

Ensine os homens a morrer. Mostre-os que eles precisam ter uma razão para morrer, pois não terão razão para viver. Faça-nos abandonar a ânsia pela certeza, pois ela cega, causa a guerra e destrói homens em fogueiras. Sua busca descomedida - a hybris dos gregos - traz o preconceito, a separação e a discriminação. Atira aviões em homens de bem, estoura bombas humanas em crianças e inocentes.

Livrai os homens da ânsia de poder, que escraviza os animais e subjuga a natureza. Não nos deixe menosprezar suas criaturas. Ajude-nos a viver em comunhão com tudo o que é sagrado. Livrai-nos do medo e dos interesses egoístas. Me deixe ter leveza nos pés para que possamos viajar e conhecer as maravilhas de sua glória sem nos cansar. Pai, tudo o que há na terra e no céu é um reflexo de sua beleza. Faça-nos acreditar que podemos ser criadores de um novo lar. Deixe-nos abandonar a vaidade e a presunção.

Faça-nos adimitir que não há importância em sabermos tudo e termos absolutismo em nossos ideais. Assim, quando um dia eu descansar, terei paz quando meus filhos estarem na Terra. Traga aos homens não a arrogância de certezas absolutas mas a capacidade de questionar e duvidar. Ajude-nos a sempre mantermos longe o materialismo infantil que a sociedade criou com auxílio das convenções.

O Senhor nos deu asas, não deixe com que seus filhos humanos criem gaiolas. Nos livre do bezerro de Ouro e todos os rituais que possam a ele se assemelhar. Que sejamos livres, leves e prenhes de criatividade benevolente. Livres das tradições. Que teu filho esteje sempre presente, guiando-os à plenitude de uma vida com autosuficiência, amor e equilíbrio. Não me deixe sofrer em meus últimos minutos Pai e que tua mão me leve ao berço da paz, onde dormirei tranquilo sob a canção de ninar de suas hóstias celestiais.

Agora descanso em meu sono, com sonhos futuros e de paz a todos os homens. Aqueles que em nome do amor causam o mal, não preciso que me aceitem, mas que me respeitem - minha casa estará sempre aberta à todos.

Obrigado Pai, Amém.

A dificuldade de dizer Não (ou sim) - C.Calligaris


A dificuldade de dizer Não (ou sim)

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A necessidade narcisista de sermos amados nos torna covardes e nos leva a assentir
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DURANTE TODA minha infância, eu dizia "não" mesmo quando queria dizer "sim".

Usava o não como uma palavra de apoio, uma maneira de começar a falar. Minha mãe: "Vou sair para fazer compras; algo que você gostaria para o jantar?". Eu, enérgico: "Não", acrescentando imediatamente: "Sim, estou a fim de ovos fritos (ou sei lá o quê)".

Os adultos tentavam me corrigir: "Então, é sim ou não?". "Não, é sim", eu respondia.

Entendi esse meu hábito muito mais tarde, quando li "O Não e o Sim", de René Spitz (ed. Martins Fontes). No fim da faculdade, Spitz era um dos meus autores preferidos, o único, ao meu ver, que conciliava a psicanálise com o estudo experimental do desenvolvimento infantil. No livro, pequeno e crucial, Spitz nota que, nas crianças, o uso do "não" aparece por volta do décimo oitavo mês de vida, logo quando elas costumam falar de si na terceira pessoa, como se precisassem (e conseguissem, enfim) se enxergar como seres distintos dos outros.

Para Spitz, a aquisição da capacidade de dizer "não" é um grande evento da primeira época da vida: a conquista da primeira palavra que serve para dialogar e não só para designar um objeto.
Mas, cuidado, especialmente no segundo ano de vida, o "não" teimoso da criança não significa que ela discorde do que está lhe sendo proposto ou imposto: a criança diz "não" para afirmar que, mesmo ao concordar ou obedecer, ela está exercendo sua própria vontade, a qual não se confunde com a do adulto.

Em suma, durante muito tempo, eu persisti na atitude de meus dois anos. Mais tarde, consegui me corrigir. Mas em termos; sobrou-me uma paixão pelas adversativas: mal consigo dizer "sim" sem acrescentar um "mas" que limita meu consentimento. É um jeito de dizer que aceito, mas minha aceitação não é incondicional. "Vamos ao cinema?". "Sim, mas à noite, não agora."

O uso do sim e do não, no discurso de cada um de nós, pode ser um indicador psicológico valioso.
Mas, para isso, é preciso distinguir entre "sim" e "não" "objetivos", que têm a ver com a questão da qual se trata (quero ou não tomar café ou votar nas próximas eleições), e "sim" e "não" "subjetivos", que são abstratos, ou seja, que expressam uma disposição de quem fala, quase sem levar em conta o que está sendo negado ou afirmado.

Se o "não" subjetivo é um grito de independência, o "sim" subjetivo é uma covardia, consiste em concordar para evitar os inconvenientes de uma negativa que aborreceria nosso interlocutor.

Alguns exemplos desse "sim" covarde (e, em geral, objetivamente mentiroso). "Respondeu à minha carta?" "Sim, já mandei." "Gostou de minha performance?" "Sim, adorei." "Quer me ver de novo?" "Sim, te ligo amanhã." Mas também: "Você vai assinar a petição para expulsar os judeus do ensino público?" "Claro, claro, estou assinando."

Acontece que dizer "não" é arriscado. A confusão com o outro, aquela confusão que ameaça a primeira infância e contra a qual se erguia nosso "não" abstrato e rebelde, é substituída, com o passar do tempo, por mil dependências afetivas: "Desde os meus dois anos, não sou você, não me confundo com você, existo separadamente, mas, se eu perder seu amor (sua amizade, sua simpatia, sua benevolência), quem reconhecerá que existo? Será que posso existir sem a aprovação dos outros?".

Em suma, o sim subjetivo é um consentimento abstrato (o objeto de consenso é indiferente e pode ser monstruoso), pois o que importa é agradar ao outro, não perder sua consideração. A necessidade narcisista de sermos amados nos torna covardes e nos leva a assentir.

Por sua vez, nossa covardia fomenta explosões negativas, tanto mais violentas quanto mais nossa concordância foi preguiçosa. À força de dizer "sim" para que o outro goste de mim, eu corro o perigo de me perder e, de repente, posso apelar à negação abstrata, espalhafatosa e violenta, só para mostrar que não me confundo com o outro, penso com a minha cabeça.

Bom, Spitz tinha razão, o uso do não e do sim permitem o diálogo humano. Mas é um diálogo que (sejamos otimistas) nem sempre tem a ver com as questões que estão sendo discutidas; ele tem mais a ver com uma necessidade subjetiva: digo "não" para me separar do outro ou digo "sim" para obter dele um olhar agradecido. Nos dois casos, tento apenas alimentar a ilusão de que existo.