
Clarice Lispector

Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.
Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada.
Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento.
Escuta: eu te deixo ser. Deixa-me ser, então.
De novo

Havia um cansaço em seus ombros e pernas. Andava sozinho em passeios diários: parques, praças, ruas. Seu olhar era vago e distante. Sentia-se resignado diante de seu impulso por viver. Sentia uma alegria em estar vivo mas, agora sem o mesmo fulgor, sem a intensidade necessária para tornar seus pesos mais leves. Possuía um olhar sereno e ao mesmo tempo triste. Seus olhos percorriam as mulheres de todos os cantos e nenhuma era capaz de chamar sua atenção. Gostava de passear a noite, um insônia recorrente tirava-lhe o sono. Em seus passeios: lua e noite. Meditava e saudava os habitantes do mundo noturno, sobretudo os gatos lhe chamavam especial atenção. Durante muito tempo, ele não mais conseguira se apaixonar. Para ele seres humanos de verdade estavam em extinção. Percebia apenas pessoas alienadas: trabalho, dinheiro, status e prestígio. A estética deixava sua marca em todos os cantos: - aparência e superficialidade. Em um mundo de cegos os olhos já não são necessários.Os olhos apenas serviam para enxergar o limitado. Muitos já não conseguiam enxergar o extraordinário. Foi quando numa tarde de sábado conheceu uma pessoa especial. Alguém que se interessava na vida, nos outros. Alguém que reconhecia os sofrimentos e as dores de existir mas que com o dom da sabedoria construía recursos internos para continuar a amar. Ela lhe emprestaria sua companhia. Ele lhe daria amor e carinho. Ele lhe ensinaria o desconhecido e ela o mistério. Jamais pensara em gostar de uma outra mulher. Jamais pensara que o amor pudesse voltar a lhe emprestar sua chama. Eros, o senhor das flechas incumbiu-se do necessário, dessa vez sem ferir a si próprio.
Um Arcebispo Mais ou Menos (C.Calligaris)

CONTARDO CALLIGARIS - FOLHA SP
Lula se expressou numa ordem perfeita: ele é (primeiro) cristão e (segundo) católico.
NA SEMANA passada, no Recife, descobriu-se que uma menina de nove anos estava grávida de gêmeos. A mãe imaginava que a barriga crescente fosse o efeito de um parasito. Mas não era um parasito; era o padrasto, que abusava regularmente a menina e a irmã (de 14 anos, portadora de uma deficiência mental). O abuso começou quando as crianças tinham, respectivamente, seis e 11 anos. O padrasto foi preso, e uma equipe médica, autorizada pela mãe, interrompeu a gravidez da menina, seguindo a lei brasileira, que permite a interrupção de gravidez em caso de risco de vida para a mãe e também em caso de estupro.
Quem conhece alguma menina de nove anos pode facilmente imaginar o que significaria submeter aquele corpo a uma gravidez completa e a um parto duplo.Além disso, qualquer um pode intuir que carregar na barriga, parir e “maternar” o fruto de um estupro é devastador para a mãe assim como para os eventuais rebentos dessa catástrofe. Alguém dirá: “Mas a mulher acabará esquecendo o estuprador (que foi gentil, nem a matou, não é?), e o sentimento materno prevalecerá”. Esse conto de fada (machista) não se aplica no caso da menina de Recife.Pede-se o quê? Que ela esqueça que, durante três anos, quem devia ser para ela o equivalente a um pai se serviu de seu corpo de uma maneira que ela não tinha condição de entender e num quadro em que ela não tinha a quem recorrer, é isso?
No meio da semana, o arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, declarou que os que estivessem envolvidos na interrupção da gravidez da menina (a mãe, os médicos, os enfermeiros) fossem excomungados. Agora, o padrasto não; pois o crime dele seria mais leve. Isso, segundo o bispo, é a “lei de Deus”. O bispo se confundiu: essa não é a lei de Deus, é a lei da Igreja Católica. E faz alguns séculos que essa igreja não tem mais (se é que um dia teve) a autoridade moral para ela mesma acreditar que seus decretos sejam expressão da vontade divina. Portanto, sua persistência em tentar convencer os fiéis de que a voz da igreja coincide com a voz de Deus se parece estranhamente com a conduta do padrasto da história (e de qualquer pedófilo): trata-se, em ambos os casos, de tirar proveito da “simplicidade” de crianças e ingênuos.
Mas voltemos aos fatos. O presidente Lula, “como cristão e como católico”, achou lamentável a declaração do arcebispo. Dom José não gostou e afirmou que o presidente Lula é “um católico mais ou menos”.O presidente Lula se expressou numa ordem perfeita: ele é (primeiro) cristão e (segundo) católico. Ou seja, se a igreja diz algo que contraria seu entendimento da mensagem de Cristo, tanto pior para ela. A mensagem cristã da qual se trata não tem a ver com a interrupção de gravidez. Ela é mais fundamental: trata-se da liberdade do indivíduo e da consciência em sua relação com Deus.
Explico. É trivial constatar que, na modernidade, a decisão moral é um questionamento constante e, às vezes, atormentado: cada um, levando em conta as ideias de seu grupo, seus valores mais singulares, seus sentimentos, sua fé (se ele tem uma) e os fatos (caso a caso), chega a uma decisão ou a uma opinião que acredita justa. Um pouco menos trivial é lembrar que esse aspecto da modernidade é o melhor fruto da tradição judaico-cristã e, mais especificamente, da novidade cristã, pela qual Deus pode ser o mesmo para todos porque ele não se relaciona com grupos ou pelo intermédio de grupos, mas com cada indivíduo, um a um.Ser moderno não significa topar qualquer parada e perder-se no relativismo.
Ao contrário, ser moderno (e ser cristão) significa tomar a responsabilidade de decidir no nosso foro íntimo o que nos parece certo ou errado. Claro, é mais difícil do que procurar respostas feitas e abstratas no direito canônico. Mas, contrariamente ao que deve achar dom José, ninguém nunca disse que ser cristão (e moderno) seja fácil.Felicito o presidente Lula, que falou como cristão, ao risco de parecer “católico mais ou menos”. Quanto a dom José, ele falou como católico e se revelou como um “cristão mais ou menos”. O dia em que ele quiser ser cristão, ele nos dirá, com suas palavras, por que e como, em seu foro íntimo, acha o gesto de quem interrompeu a dupla gravidez de uma criança de 30 quilos muito mais grave do que a abjeção de um padrasto que, por três anos, estuprou suas enteadas.
A vela contra o vento... (T.V)

Colocou a vela contra o vento. Desejo de escuridão. Depois da tempestade, há horas não havia luz artificial para iluminar a noite. Depois de um tempo, as nuvens haviam limpado do céu e a lua refletia um pouco dos reflexos de luz que recebia do grande astro do outro lado do mundo. Uma brisa fresca vinha saudar os dias de verão. A garrafa estava vazia. Abria-se outra e contemplava-se a noite. Havia muita paz. Seus olhos percorriam o escuro do céu. Estrelas brilhavam ao redor da lua. Outra vela contra o vento: mais escuro. E pensava em todas as suas aspirações: Seu trabalho, seus amores, seus anseios. Percebia o tempo como um aliado necessário, embora conhecesse Khronos: o grande devorador. Dimensionava-se no tempo e posicionava-se diante da vida que se vive - aqui e agora. Disciplinava-se a viver o hoje e o instante presente: tudo é vida e para ele, só existia o instante presente. Não renunciava à liberdade para livrar-se da angústia. Acolhia a dor de ser. Esvazia-se para logo depois transbordar. Mergulhava na imensidão do céu e da vida. Bebia mais vinho; tudo o que de mais antigo há. A bebida sagrada, o milagre de Cristo. Tudo se tornava intenso e profundo. Se perdia, se encontrava. Morria, ressuscitava. Viajava por imagens que apenas sua mente produzia, nostalgia, saudades, melancolias e alegrias.
Uma leve tristeza lhe sorria, emudecia sua fala e evacuava seus pensamentos. Voltara então, a habitar o instante presente. Permitia-se chorar por breves instantes, diante da alegria de viver, a alegria de uma criança que vive e não pergunta por quê - sabe-se que não há resposta a altura de sua pergunta. Essa precariedade de sentidos se tornara clara e presentificara sua alma: - Dádiva, ocaso, milagre, coincidência, chão e abismo. Nessa hora da noite o telefone tocara, um antigo amor retornava para celebrar a saudade. Escutou, mas já não sintia a chama que ardia por cuidado. Despedia-se e voltava a estar sob a janela onde a noite se deitava e repousava sua escuridão: beleza e mistério. Amava a noite, e por ela às vezes vagava. Outrossim, as pessoas desprezam aqueles que caminham pelas noites. Temem os solitários, desconfiam de sua sabedoria. Eles tem medo do que não podem ver e do que não se pode antecipar. Ele, amava o mundo, os lugares escuros, desconhecidos, os pensamentos inabitados, as águas límpidas e os becos lamacentos: os cantos onde apenas ele visitava, lugares onde apenas ele conhecia. O medo existe para os que temem a vida e sua imensidão, temem a morte pois, afinal temem a vida.
A casa estava vazia quando de repente algo batia em sua porta. Alguém se aproximara, uma mulher. Havia tempos que não se viam. Uma decisão havia sido tomada, sem muito planejamento. Seus cabelos desmanchados pelo vento acentuavam a beleza da noite. Seu perfume havia invadido a sala e mais tarde possuído seu quarto, sua cama. Ela entra e ao o ver diz: - “Você tem algum vinho? Preciso conversar com você! Precisava te ver, te beijar! Sentir você! Hoje vamos celebrar a vida, a noite, a falta e o excesso, o tudo e o nada! Precisava te ver! Me dê um abraço!”. Daquele momento em diante não há mais o que descrever, conversaram sobre tudo, horas a fio, regadas a vinho e pouco silêncio. Porém, quando houve silêncio, silêncio de verdade: - palavras sem tradução, palavras não possibilitariam expressar o que seria impossível transcrever. Mas, o que todos ouviram é que Deus e os anjos cantavam e assobiavam pela escuridão... nas janelas e ao redor da casa. Pelo jardim da casa, via-se criaturas deslizarem pelo orvalho, cheiros e perfumes da noite, da terra, das plantas, da vida... sem antecipar nada, tudo aconteceu. E foi então surpreendido pelo susto de estar vivo e pelo ímpeto de um amor adormecido... a última vela foi posta pelo vento: adormeceram.
Vida e Morte...

A morte pertence à estrutura fundamental do ser humano, está sempre presente. É por mela que o ser humano conquista a totalidade da sua vida. Ela é a última extremidade que limita e determina a totalidade do ser. Ela tem o poder de apagar tudo o que não é essencial ao homem. Exige dele aprender a aproveitar o tempo, a vida. Lança-o para o olhar compassivo e com compaixão ouve e escuta os apelos dos outros seres. Passa a enxergá-la não como uma destriuição mas como a última possibilidade. Passa a perceber a vida como algo de imenso valor e lhe dá um sentido para viver e para morrer. Lhe dá a responsabilidade pela existência e a vê como possibilidades a realizar. Aceita o convite para responder as solicitações de tudo o que vêm ao seu encontro.
Somos um pêndulo entre a autenticidade e inautenticidade. O modo inautêntico significa o desvio de cada indivíduo de seu projeto essencial, em favor das preocupações cotidianas, que o distraem e perturbam, confundindo-o com a massa coletiva. O eu individual seria como que sacrificado ao persistente e opressivo eles (todos e ninguém). Isso porque o homem nessa situação persiste em uma negação de si próprio em detrimento dos outros, mergulhando-se numa espécie de alienação. Quando vestimos nossa roupa de médico, advogado etc., fazemos esse movimento de irmos ao mundo, e por instantes deixamos de ser nós mesmos. Mais tarde, se permitirmos, voltamos a existência autêntica. É aquela que coloca cada um de nós (o ser humano) como verdadeiro revelador do ser, sempre acompanhada da angústia. Partindo-se de uma concepção heideggeriana, a angústia é, dentre todos os sentimentos e modos da existência humana, aquele que pode reconduzir o homem ao encontro de sua totalidade como ser e juntar os pedaços a que é reduzido pela imersão na monotonia e na indiferenciação da vida cotidiana. A angústia faria o homem elevar-se da traição cometida contra si mesmo, quando se deixa dominar pelas mesquinharias do dia-a-dia, até o autoconhecimento em sua dimensão mais profunda. A partir da apreensão da angústia, o homem se percebe como um ser-para-morte. Ela resulta da imperfeição do homem, da falta de base da existência. Quando isso ocorre, Heidegger afirma haver duas soluções: ou o homem foge para a vida cotidiana (onde se ilude numa suposta segurança e sensação de pertencimento), ou supera a angústia, manifestando seu poder de transcendência sobre o mundo e sobre si mesmo (suportando e superando a solidão, que passa a ser vista não como abandono mas como um estar consigo mesmo). Cada um de nós deve morrer a sua morte e viver a sua vida. Essa tarefa é insubstituível pois ninguém pode fazê-lo em nosso lugar. É algo que está presente desde o momento em que se dá o primeiro sopro de vida. Quando o ser humano vêm à vida, ele já tem idade suficiente para morrer. Ela nos humaniza, nos conduz a essência do ser homem.
Somos um pêndulo entre a autenticidade e inautenticidade. O modo inautêntico significa o desvio de cada indivíduo de seu projeto essencial, em favor das preocupações cotidianas, que o distraem e perturbam, confundindo-o com a massa coletiva. O eu individual seria como que sacrificado ao persistente e opressivo eles (todos e ninguém). Isso porque o homem nessa situação persiste em uma negação de si próprio em detrimento dos outros, mergulhando-se numa espécie de alienação. Quando vestimos nossa roupa de médico, advogado etc., fazemos esse movimento de irmos ao mundo, e por instantes deixamos de ser nós mesmos. Mais tarde, se permitirmos, voltamos a existência autêntica. É aquela que coloca cada um de nós (o ser humano) como verdadeiro revelador do ser, sempre acompanhada da angústia. Partindo-se de uma concepção heideggeriana, a angústia é, dentre todos os sentimentos e modos da existência humana, aquele que pode reconduzir o homem ao encontro de sua totalidade como ser e juntar os pedaços a que é reduzido pela imersão na monotonia e na indiferenciação da vida cotidiana. A angústia faria o homem elevar-se da traição cometida contra si mesmo, quando se deixa dominar pelas mesquinharias do dia-a-dia, até o autoconhecimento em sua dimensão mais profunda. A partir da apreensão da angústia, o homem se percebe como um ser-para-morte. Ela resulta da imperfeição do homem, da falta de base da existência. Quando isso ocorre, Heidegger afirma haver duas soluções: ou o homem foge para a vida cotidiana (onde se ilude numa suposta segurança e sensação de pertencimento), ou supera a angústia, manifestando seu poder de transcendência sobre o mundo e sobre si mesmo (suportando e superando a solidão, que passa a ser vista não como abandono mas como um estar consigo mesmo). Cada um de nós deve morrer a sua morte e viver a sua vida. Essa tarefa é insubstituível pois ninguém pode fazê-lo em nosso lugar. É algo que está presente desde o momento em que se dá o primeiro sopro de vida. Quando o ser humano vêm à vida, ele já tem idade suficiente para morrer. Ela nos humaniza, nos conduz a essência do ser homem.
Aqueles que não se permitem sofrer, sentirem dor talvez não saberão do que se trata. São escravos da tirania da razão, sempre pronta a encontrar subterfúgios intelectuais para responder a vida. Mas, jamais se sensibilizam pelo sol que nasce, pelo céu da noite escura ou pelas multiplicidades de existências que o mundo abarca. Julgam e possuem respostas para o indizível. São mestres do discurso e da retórica e dizem possuir a verdade. Esquecem da fragilidade da vida, estala-se numa impressão de ela está sempre garantida e assim, se descuidam. Tudo perde seu valor. A morte e o morrer pode nos acordar desse sono. Enquanto aqueles que acolhem a visitação da angústia, podem sentir a dor e o sofrimento da vida e da morte mas, não sentem raiva, desespero ou rancor diante do fim. Possuem a si mesmos e a alegria serena de uma existência intensa, fiel a si mesma, onde não se precisa de certezas mas, de inquietações.
Sozinho...

Por isso, caro senhor, ame a sua solidão e carregue com queixas harmoniosas a dor que ela lhe causa. Alegre-se com essa imensidade, para a qual não pode carregar ninguém consigo. Seja bom para com os que ficarem atrás, mostre-se-lhes calmo e sereno sem os atormentar com suas dúvidas, nem os assustar com uma confiança ou uma alegria que eles não poderão compreender. Ame neles a vida sob uma forma estrangeira e tenha indulgência com os homens que, envelhecidos, temem a solidão a que o senhor se confia (Rilke)
O amor

Vou dar uma imagem: "Eu amo tanto você que viveria eternamente ao seu lado". Isto é uma imagem, é uma mentira factual, absoluta impossibilidade. O amor não é dissolução de si mesmo, é promoção de si mesmo com o outro. O tempo de encontro está dizendo que a minha disponibilidade é eterna com você enquanto estou com você, enquanto posso estar com você. Porque eu tenho também outras urgências como pessoa e estas urgências minhas têm a sua importância, o que não substitui aquelas que vivo com você. Eu amo você, com certeza, do modo que é o amor na sua versão mais fundamental: encantamento com aquele jeito de ser. Amar é isso, encantar-se com aquele jeito de ser. Amar não é só um sentimento que me abre para o absolutamente original do outro, mas faz o outro descobrir o divino que ele é. Quem ama faz o outro perceber algo que ele nunca tinha percebido nele. É uma doação magnífica. E a nossa relação é mantida, sustentada por esse tipo de presença um para o outro. A natureza de nossa presença é uma proposta de relação que o outro vai responder como der, puder, quiser. O tempo é uma expressão claríssima da nossa exsitência uns com os outros: tanto o meu amor por você está presente, como este amor não é a única dimensão com a qual eu sou na vida. Não estou dizendo que no amar não há necessidades, mas não se resume a isto. O amar tem a simplicidade da graça,é de graça, amar é promover. (Nichan Dichtcekenian)
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